sexta-feira, 25 de abril de 2008

Como Animais

O bestial vive em nosso mais profundo?



Apenas o humano é domesticado. Animais são sempre selvagens.

O acesso ao próprio selvagem corresponde a descer uma escada em espiral, no mais profundo, na escuridão. Ali, onde nada inspira confiança e conforto, longe de tudo que conhecemos como sendo civilizado e tecnológico, além de toda convenção, condicionamento e proteção, está o real. Apenas o real. O nosso eu selvagem. O encontro com o próprio bestial. Nesse momento temos de assumir nossa animalidade, dominar a fera e tê-la ao nosso lado.

Porém, esse movimento é perigoso para todo o restante do que chamamos de sociedade. O ser selvagem é desagradável, é perseguido, é aquele que vive à margem do restante.

Desde crianças somos domesticados. Condicionados, educados, doutrinados, encarcerados. Essa descaracterização é construída sob todas as expectativas da família, primeiramente. Humilhados, comprados, convertidos, nos sentimos ao final, totalmente úteis para o meio. Aprendemos a dar valor em bens materiais, carreira, objetivos de vida, leis divinas, bênçãos alheias. O restante é dado como diabólico. Rejeitado como algo ruim, horrível, detestável. O que somos realmente está no meio do submundo. O medo é colocado como portal. Os valores zelam pela nossa miséria. A sociedade de consumo tira nossa atenção. A mídia nos torna estúpidos.

Deixar de ser quem se é realmente, nunca é agradável. O aprisionamento é uma violência contra a verdadeira natureza. É necessário deixar de lado o que somos em nome de algo supostamente maior e de suposto real valor. Marcas são criadas. Comportamentos aceitáveis gerados, treinados, colocados em nossa face. É a formação da personalidade. A máscara que vamos impor ao mundo. Cravada no rosto com chicotadas, ou com carinho, ou com sedução, ou com trocas. A máscara é cultuada. É valorizada. É o final da infância. O inicio do nosso reconhecimento como pessoas. Sem máscara não somos aceitos. Sem a máscara não existimos.

As marcas da criação da persona, assim como as marcas de diversos traumas e problemas diversos, são colocados por trás da máscara. E lá ficam todos escondidos. Assim como quem realmente somos. Atravessar o portal da máscara é acessar a escadaria que leva ao submundo. Na escadaria encontramos partes soltas daquilo que nos é real. Fantasmas de todos os tipos. Fantasmas daquilo que escondemos por trás da máscara. Partes daquilo que negamos. Que fomos obrigados a negar. Daquilo que não somos capazes de aceitar de nós mesmos. Tudo que abandonamos em nome de conviver. A vida real que devíamos ter, mas foi abandonada. As raízes daquilo que não brotou. Nossos medos, nossa desesperança. Nosso lado obscuro. Nosso verdadeiro lado complexo.

Tudo isso clamando para voltar à tona. Bombardeando a máscara e a sociedade. Causando problemas a todos que nos cercam. Tentando nos sabotar a cada momento. É a hora de assumir-se. De saber quem se é.

No entanto, é apenas o começo da descida ao submundo.

Quando o portal das máscaras se abre, encontramos nossas feridas. Elas agora estão expostas, não há como negar sua existência. É o momento de culpar a tudo que nos cerca pelo que fizemos, ou pelo que não fizemos, ou pelo que nunca tivemos coragem de fazer. Ali, perante nossas feridas expostas, diante do espelho, vendo nosso verdadeiro rosto, as marcas estampadas, a dor reprimida, o animal acuado, raivoso, pronto para atacar.

O momento em que vem a compreensão da máscara. Ela é como um elmo. A criamos como proteção. Protegemos-nos com ela do restante do condicionamento. Aceitamos o que foi imposto. Tornamos-nos o que todos esperam que sejamos. A máscara é uma violência. É uma forma de degredo do real. A inaceitação. A programação.

Retirar a máscara desfaz o programa. Mas gera outro problema: Como viver com liberdade? Como olhar para o mundo com reais olhos? Como ver as máscaras nas faces alheias? Como ver as pessoas sendo torturadas por elas mesmas e pelo meio em que vivem? É o terror da realidade. É simplesmente, a verdade.

A máscara se torna um elmo, mas o guerreiro teme lutar.

O ego é uma proteção, mas é uma violência. Para o mundo mascarado, existe apenas a espera pela Morte. Viver sem viver. Uma vida fútil, sem sentido, apenas sendo norteada pelo que o mundo das máscaras oferece. Uma vida apenas um pouco mais decorada.

Encarar as próprias marcas é ir além de se deliciar na própria doença. É dissolver complexos, retirar a dor. Encarar o próprio lixo, descendo a escadaria, com o eu selvagem a frente, observando e esperando.

Apenas o inicio, passar por Cérbero, pagar o barqueiro...

Ir além das lágrimas das próprias feridas. Ir de encontro à lembrança de si mesmo. Retirar quem se é do fundo da escada em espiral. O reencontro. O encontro do verdadeiro eu.

Ali, onde a Criança Dourada dialoga com o Velho Sábio.

Não seremos mais vários, confusos perante o mundo. Seremos apenas um e o Universo nos verá.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O Peso das Máscaras


Somos semelhantes a estrelas?



A idéia de que somos estrelas, ou pelo menos, como elas, é muito antiga. E não existe muita novidade nisso. Remonta a uma crença sideral da antiguidade, onde um de seus mais ilustres expoentes seria Platão. Modernamente, com o conhecimento vindo da física estelar, tanto como da termodinâmica, como da cosmologia, foram propostos modelos próximos para nosso funcionamento.

Seriamos moldados pela energia psíquica (para alguns a libido), que por comparações míticas, poderíamos associar ao funcionamento estelar. Existe toda uma “economia” ligada a essa energia, além dos problemas causados pelo aumento de entropia.

Manter certas estruturas demanda mais energia psíquica. Certos esforços também. E esse é o caso da complicada estrutura que criamos, chamada de persona. Ou pelo termo que venho aplicando: Máscara.

Falar sobre a máscara realça todo um conteúdo mítico e simbólico que auxilia no trabalho de remover. Remover, claro, todo o conteúdo mítico e simbólico que nos impede de ver corretamente a máscara. Ou simplesmente de nos olharmos sem ela. Ou, mais complexamente, de olhar para o mundo sem o seu auxílio. Olhar para nós e para todos sem os filtros da máscara.

A máscara é nosso molde para o mundo. Foi construída baseada nos critérios de aceitação desse mesmo mundo. Foi moldada pelo nível de exigência de cada individuo. Foi forjada com energia psíquica. Foi calcada e calcinada em nossas faces por apego e infantilidade. Ela se mistura conosco e nos faz crer que somos única e exclusivamente ela. Somos dominados por algo que criamos para poder conviver na sociedade.

Não somos a mascara. Temos de enxergar além dela. Porém, cultuamos tanto a máscara, nos importamos tanto com ela, que necessitamos cada vez mais de energia para que ela seja cada vez mais bela e aceitável.

Para ir além da máscara, necessitamos ver quem realmente somos. E para tanto, necessitamos de energia psíquica. Pois a imagem real está além da máscara. Não estamos visíveis, não sabemos para onde exatamente olhar. Quanto mais nos focamos na máscara, menos vemos nosso próprio conteúdo, mais tendemos para a futilidade. Mais vivemos de aparências, voltados ao exterior e a quem se importa com máscaras. Ou seja, praticamente todos.

Com uma máscara, podemos ser quem quisermos. Moldamos a máscara ao personagem que nos mais agrada. Porém, esse personagem é falso. Algumas vezes é moldado conforme mitos. Outras, conforme a literatura. Ou conforme os moldes mais comuns existentes. Como não corresponde a um padrão real, calcado em quem somos, esse personagem não é capaz de alcançar algum desenvolvimento, ou chegar à maturidade.

Viver pela máscara começa a se tornar um fardo. É necessária cada vez mais energia psíquica. Deixar de lado qualquer desenvolvimento e contato consigo mesmo, em nome da dedicação as aparências. É muito mais difícil ser algo que não se seja, do que focar-se no Si Mesmo, e deixar que a criança, o Puer, tome o controle sobre a persona.

Focar-se na máscara é antes de tudo invejar. É querer a melhor máscara, é espelhar-se no outro para melhor se compor. É criar com mais e mais esmero uma fantasia. Afinal, máscaras são utilizadas juntamente com fantasias. A fantasia de um fútil baile de máscaras. Onde ninguém enxerga o real rosto de ninguém.

Sem o acesso à criança solar, não existe contato com o espiritual. Depende-se da pura fé, da doutrina, do dogma, daquilo que não inspira reflexão, pois conectar-se ao divino é uma profunda forma de se liquefazer a máscara.

Nada é real. A máscara, a família, a sociedade, a religião, o estado, o direito. Todos são compostos por máscaras e pelas máscaras. Seres que protegem as máscaras. Máscaras que protegem máscaras. Pessoas que lutam pela manutenção de um mundo calcado em máscaras. Tudo é aparência.




Qual o preço do sacrifício?



Até o momento em que começa a insatisfação. Qual o custo pela manutenção de máscaras que nos afastam de quem somos? Qual o custo da manutenção de papeis que não nos possibilitam o crescimento e fortalecimento de laços com a psique? Qual o custo do sacrifício para estarmos distantes de quem realmente somos? Vale realmente a pena termos vidas infantis voltadas para as aparências? Deixarmos de lado o nosso verdadeiro eu selvagem? Sermos domesticados e acorrentados em uma teia infinita de responsabilidades inúteis, que apenas consomem nossa energia? Termos uma história pessoal pela qual lutar? Termos uma vida voltada e calcada em padrões de moral e conduta impostas pela sociedade? Vivermos nulificados em nome de uma divindade? Deixarmos de lado quem somos em nome de uma crença? Vale a pena deixar de viver em nome de um relacionamento? Vale a pena apostar em quem não amamos, em virtude da crença da santidade do casamento? Vale a pena ser dependente de quem quer que seja, em nome de dizer que somos felizes? Vale a pena viver de esperanças, enquanto nada acontece? Vale a pena não agir, em nome de uma vida que nos é imposta?

A roupa que veste, é realmente sua? É esse o papel que quer para si? É isso que vê no espelho, o reflexo do seu eu real?

A relação que tem com a família é real? A dependência que existe para com a família, é algo seu, ou imposto? A dependência que a família tem para com você, é real, é imposta, é ilusão? É glamour que o cerca realmente? A miséria que tudo se tornou, é realmente seu? É algo maduro? É algo que o leva ao desenvolvimento?

Gasta todas as energias que tem com o que?

As responsabilidades que tem são realmente necessárias? Precisa realmente disso? Está além do que é suportável? Realmente é alguém de sucesso? Ou é escravo do que chama de sucesso?

Existe vida além disso? Onde está no meio disso tudo?

Assumiu ser louco, por precisar de disso? Sua loucura é real? É imposta? É um papel? É uma forma de conseguir algo? Até que ponto é dependente de seus escândalos? Até que ponto se tornou dependente de sua doença?

Até que ponto a sua doença é criada e cultivada pelo meio? Necessita realmente dela? Necessita realmente ser um incompreendido? Necessita de ser uma pessoa correta?

Isso tudo que mostra e vê, é real?

Caso não seja, não é você.

Quem é você aí no meio disso tudo?

Não gaste energia com ilusões. Foque sua libido no Si Mesmo e no nascimento da criança solar. É essa que vai se desenvolver.

Mas cuidado. Quando retirar a máscara será apenas você mesmo.

Agüenta essa visão?

Já vi gente enlouquecendo por ver quem realmente é. Tentando juntar os cacos da máscara. Tornando-se mais e mais doentias. Perceber-se é doloroso. Saber quem se é, uma tarefa para poucos.






O que existe além de nossas coloridas e belas máscaras?

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Espelhos e o Louco

Máscara de Carnaval em Veneza



Nem sempre ao olharmos nosso reflexo no espelho, vemos o que é real. Vemos um produto criado para ser mostrado. Um produto que é a síntese de vários produtos vendidos pela sociedade de consumo. A união desses elementos é uma forma de agradar e conseguir um objetivo. O principal deles é a aceitação. Sermos aceitos primeiramente pelos pais, depois a uma tradição familiar, pelos que estão próximos e por fim, pela sociedade em geral, procurando os objetivos gerais impostos como padrões de mercado. O custo de gerar esse produto é relegar ao esquecimento aquilo que verdadeiramente temos. Prefiro comprar algo externo a mim, a utilizar o que tenho à mão.

Criamos uma imagem agradável a ser mostrada a todos. E quanto mais interessante ela se torna, mais a embelezamos. Cultuamos a máscara. Deixamos de lado o que realmente somos em nome do que nos agrada: O reconhecimento e a atenção alheia. Essa máscara implica em um papel a ser vivido. Em recolher o roteiro conforme modelos disponíveis, todos literários, mitológicos ou imaginários. E depois viver esse roteiro, que nos leva a deixar de lado qualquer possibilidade de realizar a aquilo para o que fomos moldados. Assim, o que realmente somos é substituído por algo que reina sobre nós. O ego se veste desses componentes e os usa para dominar nosso destino. A máscara cênica domina o ator, de forma que não se consegue escapar do personagem e continuamos atuando o papel pelo resto de seus dias. Os papéis são trocados por conveniência. O coitado, o responsável, o herói, o marginal, o incompreendido, o sofisticado e o mais complexo de todos: O sábio.

Entretanto, a máscara se faz necessária ao convívio social. É através dela que vamos manipular a sociedade e não sermos manipulados por ela. Não sermos vítimas dos papéis, mas senhores e manipuladores deles. Para essa transição, aparece a figura do bobo da corte, o Louco, o trickster, o Heyokah.




Heyokah



Quem sonha com os pássaros do trovão (ou Wakinian), ou com o trovão e a tempestade, pode se tornar um Heyokah na tradição Lakota, a figura do que conhecemos em nossa sociedade como o palhaço. O Heyokah está acima da simples caricatura. Ele é o bobo sagrado. Tem atributos sobre-humanos e é aquele nos previne das ações funestas do coyote. Rir de si mesmo, inverter os padrões da tribo. Vestir-se ao contrário, enxugar-se antes de se banhar, dormir durante o dia e assim por diante. Heyokah é como o sátiro, o desconcertante, aquele que ensina pelo rir, pelo absurdo. Suas lições são cortantes, pois tiram do comum, alteram a percepção viciada por aquilo que chamamos de correto. Vai além da estagnação, da calcificação, das tradições, pela seriedade e principalmente, pela auto-importância. É a loucura demonstrando o caminho. É a loucura disparatando o que entendemos como normal. A insanidade divina. A caricatura da máscara zombando da pompa.

Em síntese, o Heyokah é alguém que tem habilidades para com a tempestade.


Algo semelhante como o traçado pelos componentes da escola Cínica na Grécia. Os Cínicos defendiam a ausência do supérfluo em nome da autarquia, ou seja, o domínio sobre si mesmo. Diógenes, principal discípulo de Antístenes possuía apenas uma túnica, um cajado, um embornal de pão e vivia em um barril. Assim como invertia as ações da cidade, caricaturava, zombava e levava ao choque.



Diógenes de Sinope

Outro exemplo é o dos dervixes da tariqa Bektash, que mesclam situações cômicas e até desrespeitosas para ativar percepção. Como ir as mesquitas e fazer orações bêbados, sem ablução, ou emitindo sons corpóreos “constrangedores”. Todas situações reprováveis aos olhos dos muçulmanos ortodoxos. O objetivo mais exato é chamar a atenção ao movimento repetitivo e desconexo das práticas islâmicas.

Dionísio, o deus das máscaras, era acompanhado por um cortejo composto por Pã, Príapo, Sileno e dos Sátiros. Havia a alegria e o desconcertante, na indução do êxtase, do selvagem, da transgressão. Dionísio o deus da loucura. O Louco Divino, que quebra os padrões da religiosidade, devolvendo ao estado selvagem e natural.

Quando existe a conexão com o Si Mesmo, o Louco Divino começa a se manifestar e demonstrar a inexorável fragilidade da máscara, o domínio inconseqüente da persona, o controle que a auto-imagem impõe ao indivíduo, o tamanho do apego pelo externo, o ridículo pelo qual vivemos e nos vendemos. A auto-importância começa a se tornar um incomodo e o reflexo do no espelho começa a ser agressivo. Ou o Heyokah vence a máscara e nos torna senhor dela, ou o coyote está pronto para nos derrubar e colocar em perigo.

A máscara deve apenas existir como jogo de cena e não como domínio. Deve demonstrar o mistério para o mundo e a roupa invertida do Heyokah. Sacrificamos nossa auto-imagem, assumimos quem somos. O inimigo do Deus é sacrificado. Olhamos a verdadeira imagem no espelho. Da sátira para a tragédia.

A máscara não se entrega facilmente. Entretanto, a desconstrução já está em curso. Até o momento em que o domínio sobre a persona torna desconstrução em revisão, no olhar correto, na percepção verdadeira do fenômeno do Self.

Tornar-se senhor das máscaras é deixar que o Louco conduza a jornada. O Louco é a conexão com o Si Mesmo, é a chave para o nascimento do Eremita. A assunção do Puer é o começo da jornada. O Puer não é a liberdade, ou temos aí a repetição do vôo de Ícaro. O Puer é o início da manifestação do Sênex. Puer-Sênex são dualidades, misturas, syzygyas. Existe aí o domínio, o controle, a soberania. O dançarino divino como senhor de seus gestos, expressando a dança cósmica em cada ato.

O Puer é o Louco. O Sênex é o Louco.

Cada ato deve ser divino e é conexão. Cada ato com domínio próprio é o despertar eterno. É o enxergar do infinito. É a dança que distorce o que chamamos de realidade. Sem domínio e conhecimento próprio, não podemos ter a percepção correta. Não podemos ver o mundo que se esconde dentro do mundo. Não vemos o visível.

É na visão da águia que existe a manifestação de Wankan Tankan, o Grande Espírito.

Quem vê a si mesmo corretamente, vê ao outro corretamente, vê o mundo corretamente, conhece a própria jornada, toca nas próprias marcas. Torna-se manifestação do Si Mesmo. Muito além de apenas a si mesmo.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Dança Cósmica da Alucinação, Cósmica Alucinação na Dança

Alucinação de Si Mesmo?




É complexo falar sobre o Self (ou o Si Mesmo). Certas experiências são difíceis de se expressar, por se tratarem de elementos além das palavras. Nem sempre a razão é capaz de captar o que vivemos. Poucas vezes somos capazes de dizer o que deva ser dito, por não haver palavras. A razão apenas capta o que é plasmado pelas imagens. Ir além do que conhecemos como o que somos é uma experiência de êxtase puro, do tirar as máscaras e assumir quem realmente se é.

Assumir-se é ir além das figuras do ego. Abrir o canal para o acesso ao Self é como um desmontar de peças que colocamos como sendo o que gostaríamos de ser. Vivemos de projeções e expectativas. Até o despertar somos o que querem que sejamos. Lutamos para sermos iguais a todos. Lutamos para sermos aceitos. E todos os que temos próximos e dos quais necessitamos, jogam com o amor, com a atenção, com punições, nos compram, nos vendem, nos “educam”.

Esse é o processo da domesticação. Ao contrário dos animais, somos domesticados. Somos condicionados, escravos da grande máquina motora da sociedade. Fabricados como tijolos, para sermos encaixados no grande muro do mundo moderno. O muro que fecha o caminho para o Self, onde somos quem realmente somos, que está em um outro Mundo (que não é mundo) onde somos seres totalmente selvagens.

O ser natural e selvagem que vive em nós está além de todos os muros. Para acessar a quem somos, temos de desconstruir o muro. Desconstruir quem somos. Refazer a escala genética evolucionária. Destruir a evolução que nos coloca como elementos de uma parede. A sociedade nos tornou uma projeção dela mesma. Uma distante fortaleza da solidão, onde estamos em contato com todos ao mesmo tempo em que estamos isolados de quem realmente somos. E a solidão de estar longe do Self é viver entregue às máscaras que criamos para o mundo.

Desmontar a fortaleza da solidão é recriar o grande labirinto em espiral. Cada tijolo daquilo que achamos que somos irá fazer parte da grande escadaria em espiral para o centro. O centro de quem somos. Descer essa escadaria é entrar na grande alucinação do Self. A percepção do fenômeno do Self, a alucinação do encontro consigo mesmo.

Perceber a Si Mesmo é perceber o que não se é. A retirada das máscaras, a assunção do verdadeiro em si. O estremecimento daquilo que chamamos de realidade, a vinda daquilo que podemos chamar de Verdade. A única e subjetiva Verdade. Além de símbolos, imagens, literatura, mitos, figuras e qualquer forma de imaginário. Nada além de Si Mesmo, nada menos do que se é. O exato. O ponto central e de equilíbrio total.

Perceber-se, saber quem se é. Saber o que não é. Saber os próprios limites. Saber onde se toca o ilimitado. A percepção de até onde vamos. E o que está além de nós. O que é meu, realmente meu. Quem sou e o que isso me possibilita. O que me possibilita é algo que me define. O que me define é o meu mar infinito de possibilidades.

Os filamentos alucinógenos de tudo que sou. O verdadeiro transe de quem sou. A dança do êxtase da viagem ao meu mais profundo. Ali onde me misturo com tudo que existe e onde sou parte, Eu mesmo sou o dançarino cósmico. Minha dança é a dança do universo, do infinito e do finito. Sou o que posso ser. Isso é o grande assombro de ser quem sou. O assombro do Si Mesmo. O assombro de tudo que existe.

Quem sou circula por mim, é quem sou, está além do jogo de máscaras. Para o mundo estou usando uma máscara. Perante mim, no centro de todos os labirintos, estou além de todas as máscaras. A máscara é aquela que uso para o mundo. E de mim, o mundo apenas vai ter minha máscara.

A máscara que é um conjunto de máscaras. O labirinto das máscaras. Aquela que dança com filamentos que destroem e penetram a ilusão que todos criam para os próprios egos. A máscara de minha persona. A persona de meu ego. O ego que confunde egos.



Nataraja



Assim serei: Aquele que usa a máscara e não é usado por ela. Quem puder me ver, olhará a algo firme como a mais pura rocha. Atrás da máscara, a mais pura alucinação. A minha dança cósmica em êxtase. O êxtase da bacanália. O êxtase da dança de Shiva, o Destruidor. O vórtex da existência.

Nada além de mim, além de mim mesmo.

Pura transgressão...

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Labirintos de Espelhos



A luta com o Si Mesmo



Em nosso primeiro trabalho, o Velho da Montanha me mostrou um estado absoluto de encontro, uma imagem de percepção como um espelho daquilo que existe dentro de mim. Nem sempre percebemos o que está aqui dentro, pois é mais fácil estar perdido no enorme labirinto de espelhos, que também chamamos de psique.

Assim termina Jorge Luis Borges o conto “A Casa de Asterion”:
- Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu – O minotauro apenas se defendeu.

O labirinto é sempre um acesso, uma entrada, um local para onde vamos procurar um encontro. Assim como em Creta, existia um labirinto no Necromanteion, o local do oráculo dos mortos. O centro do labirinto é o local do acesso a si mesmo.

O labirinto também é a imagem da cidade. A cidade também é uma das referencias à Alma. Trafegar pela alma é andar pelo labirinto. Estar ali sozinho é estar sujeito a ser destroçado pelo Minotauro. Andar com a senhora do labirinto, Ariadne, é ter o fio que permite encontrar ao Si Mesmo e conseguir o retorno seguro.

O labirinto é pleno de caminhos e encruzilhadas. Composto pelos seus limites, com encruzilhadas em forma de “T” e encruzilhadas em forma de cruz. Um composto de cruzes e suásticas. Habitado por um ser meio homem e meio touro, de forma humana e bestial. O touro de Dionísio, que muitos crêem ser um deus cultuado em Creta. Dionísio que é apontado (juntamente com Hécate) como um deus que leva à bestialidade e à loucura.

Asterion, em grego ou Asterios, em latim, é o nome ao mesmo tempo do Minotauro, como de um rei de Creta. Asterion, ou “Senhor das Estrelas”, casou-se com Europa, amante de Zeus e criou seus três filhos Radamanto, Sarpedon e Minos. Existem versões onde o rei Asterion e o Minotauro são o mesmo ser. Minos viria a ser o sucessor de Asterion no trono de Creta. Em outro mito, o Minotauro é filho de Parsifae e de um touro que Poseidon envia a Minos, para ser sacrificado.

O que nos reserva o centro? O que nos reserva o centro do labirinto, provável morada de Astérion?

O labirinto é algo como o nó górdio. Um emaranhado impossível de ser decifrado. Conta o mito que Dédalo, brilhante construtor, ficou preso no próprio labirinto que criou a pedido de Minos, para aprisionar o Minotauro.

A psique não desvendada demanda sacrifícios e esconde seres como o Minotauro, como no mito em que Minos exigia que anualmente sete rapazes e sete moças fossem entregues para o sacrifício no labirinto. Como no texto de Borges, o Minotauro esperava seu salvador. Dessa forma, esse ser aparece como uma das representações do Si Mesmo, aquele que vive no centro do labirinto.

O Minotauro também é muitas vezes associado a Dionísio, deus do êxtase e portador das máscaras. As máscaras como acesso, semelhantes ao labirinto.

Ícaro, filho de Dédalo, também fica preso no labirinto. Junto com o pai, com asas feitas com cera, escapa voando. Mas, extasiado com o vôo, vai rumo a Hélios, o Sol. O calor derrete suas asas e ele cai no mar. Quem “escapa” do labirinto encontra outros perigos.

O centro é o local onde estaria localizado o Minotauro, a figura bestial, envolta na “sombra” do labirinto. Aparece a imagem que o Velho da Montanha me passou. Estar no centro, ser como uma rocha ou uma montanha, imóvel, centrado, localizado onde tudo converge. A visão total é alcançada por quem chega ao topo.

É claro que a rocha ou a montanha são símbolos pessoais. Poderia ter utilizado a imagem do Unicórnio, ou de violentos Dragões Telúricos.

Há muito tempo o Príncipe e a Princesa me disseram que isso se tratava do “ponto de convergência”. O ponto mais eqüidistante de tudo que somos. O local central de todo o nosso “tempo”, passado, presente, futuro, num mesmo instante. Todas as nossas sub-personalidades, em uma só. O centro das máscaras de nossa persona. O centro de tudo que falei. O “ponto de convergência” pode ser encontrado em diversas culturas, religiões ou cultos. Não é algo exclusivo, mas algo comum a todos que trafegam pelos corredores do próprio labirinto, parte do labirinto universal. O ponto de encontro de todas as almas. Uma cidade de símbolos, de locais, de passagens, de elementos infinitos. Um enorme jogo de espelhos cósmico. Aquele que é regido pela Senhora de toda a psique.

O fio de Ariadne não é apenas um fio, é o desenrolar de quem somos, o caminho que nos leva ao Minotauro e a trilha que nos define. Somos o caminho que trilhamos, todas as marcas que recebemos com ele. Somos as marcas que nos impelem a trilhar o caminho. Não existe diferença entre nós e o caminho. Entre nós e o fio de Ariadne. Ao encontrarmos o Minotauro, esse fio se torna nossa placenta, o sinal e a marca de que nascemos. A Senhora do labirinto se torna a parteira de nossa alma. Nascemos novamente, como filhos de uma Mãe que nos fez lutar contra o nosso Eu Mesmo.

Nada é dado gratuitamente. Quem vence o Minotauro, conquista a Si Mesmo. O Si Mesmo que emerge das sombras pelo êxtase, a tragédia dionisíaca. A omofagia de quem não somos. Criamos o nosso próprio alimento. Criamos nossos próprios medos, inseguranças e demônios pessoais. Eles serão sacrificados no altar do centro. Algo como o despir das cascas que nos levam à descida ao Mundo dos Mortos. O consultar do Necromanteion, o encontro com o oráculo, o oráculo dos nossos próprios mortos. Descer o seu labirinto, até a escuridão e ouvir as vozes dos que já se foram, mas estão nos indicando o caminho.

O encontrar do Santo dos Santos, um templo onde o local mais sagrado e fechado, destinado ao mais puro dos sacerdotes é onde existe um espelho. Nesse momento nos fundimos à imagem. E refletimos quem realmente somos. O Selvagem total e completo. Algo destinado apenas ao Guerreiro Perfeito.

Ali, num local onde vemos tudo. Não existem vários de nós, apenas um. Não criamos partes de nós identificadas com mitos, ou contos, ou lendas, ou algo imaginário. O centro é o real. O labirinto é de espelhos. Em cada caminho de nosso labirinto, reflete uma parte desse centro. Em todos os reflexos, um caminho tortuoso e impossível de se traçar. A cada ponto, o risco do Minotauro. Quando se chega ao centro, encontra-se o Eu Mesmo, antes de tudo Bestial.

Sem estarmos no centro, ou sem conseguir contato com ele, estamos perdidos pelos corredores, decorados com machados duplos.

No centro, vemos todos os reflexos possíveis do Eu Mesmo.

Os reflexos dos reflexos, dos reflexos, dos reflexos.

Os reflexos são infinitos.




Site com o texto completo de “A Casa de Asterion” de Jorge Luis Borges:

http://www.alfredo-braga.pro.br/biblioteca/asterion.html

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Espelhos Celestes




De Theia, a divina e Hypérion, a luz, nasceu Eos, a Aurora.

De Crio e Euríbia (ou de Gaia e do Tártaro), nasceu Astraeus, o alvorecer das estrelas.

Eos unida a Astraeus, teve vários filhos, entre eles:

Phainon, o brilhante.
Phaeton, o claro, luminoso, alegre (também dado como filho de Eos e Cephalus, que não deve ser confundido com o filho de Hélios, o Sol).
Stilbon, o “respingador”.
E Pyoreis, o de cor de fogo, o inflamado.

Eos também se uniu a Cephalus e concebeu a Hésperos, o Oeste, que os romanos chamaram de Vésper.

Os titãs Crio e Euríbia conceberam a Phosphoros, que os romanos chamaram de Eosphoros.




Phophoros, ou Eosphoros, ou Lúcifer




Esse é o mito do nascimento dos planetas, palavra que significa “errante”, pois ao contrário das estrelas “fixas”, eles se movimentam nos céus.

Com a influência dos Persas, os gregos absorveram a astrologia mesopotâmica e associaram os planetas aos deuses. Assim:

Phainon se tornou Cronos, inspirado em Ninurta (Ninib).
Phaeton se tornou Zeus, que assim se sincretizou com Marduk.
Pyroeis torna-se Ares (ou até Héracles), assim associado com o complexo Nergal.
Stilbon se torna sagrado a Hermes, ligado a Nabu (Nebo).

Os gregos aceitaram que Hésperos, o do anoitecer e Phosphoros, o do amanhecer, seriam o mesmo planeta e os consagraram a Afrodite.

De grande importância nesse esquema teve a influencia de Platão, preocupado com o ateísmo. Dizia ele que se os deuses estivessem visíveis nos céus, ninguém poderia duvidar de sua existência. Isso é parte de um enunciado de uma complexa religião sideral, onde as almas que alcançavam a salvação se tornavam estrelas.

Os romanos sincretizaram Cronos com Saturno, Zeus com Júpiter, Ares com Marte, Hermes com Mercúrio e Afrodite com Vênus.

Mais tarde, sistematizada por Ptolomeu (e outros), que foi influenciado pelo aristotélico Alexandre de Afrodisia, vem a astrologia que se torna extremamente popular. Antes, havia o recurso aos oráculos, como o de Delphos, ou o Necromanteion de Ephyra, o oráculo dos mortos.

A astrologia se constituiu em uma tradição, de certa forma questionável. Nergal, deus da guerra, do submundo e da pestilência foi conhecido pelos Hurritas e Hítitas como Aplu. Como sabemos, os hititas influenciaram fortemente a religião grega. Aplu pode ser o antigo nome de Apollo. Embora entremos nos domínios da mitologia comparada, Apollo foi também um deus da pestilência e do submundo, sendo que um de seus animais era o corvo. Os gregos o identificaram fortemente ao Sol, tanto que mais tardiamente tomou lugar ao culto de Hélios em algumas regiões, cada vez mais identificado com o Astro-Rei. Nergal também é algumas vezes identificado com Shamash, o nome acadiano do deus-Sol, que corresponderia ao sumério Utu.

Essa ligação Guerra-Pestilência-Submundo é parte dos elementos tanto solares quanto de Marte. Mas aí estamos atribuindo significados. Dessa forma, consigo influir na fórmula de que Dionísio seria Hades, proposta por Kerényi. Consigo embutir que tanto Apollo quanto Dionísio se encaixam como senhores do submundo.

Significados, significados e significados. Teorias ligadas aos significados.

E é aí que nasce o ponto ao qual quero discutir: Planetas como espelhos. Os céus cheios de significados. Planetas envoltos em diversas especulações, associações, divindades. O sujeito que cria seus objetos e os nomeia. Eventos influenciados pelos observadores.

Toda a teoria de significados planetários pode ser desconstruída e questionada. São corpos celestes que recebem o que queiramos dar. Uma sala de espelhos celeste. A astrologia calcificou seus significados e aplicações em uma tradição. Essa tradição funciona, efetivamente. Mas funciona a partir de quais parâmetros? Essa tradição é tecida pela realidade? Os significados dados aos céus são reais? Ou fazem parte da mente coletiva? Estaremos apenas reverberando pensamentos coletivos? A astrologia é capaz de observar a essência de cada um de nós? Estamos olhando para a Essência, para a Alma, para a mente?

Se estamos reverberando pensamentos coletivos, seriam os comportamentos das pessoas ligados a eles? A astrologia reflete a essência ou a máscara? Os planetas apenas refletem o que vemos, ou impomos o reflexo a partir do que parcamente compreendemos ser? Aquilo que compreendemos ser é o que podemos chamar de Essência?


Sophia



Dentro dessas questões, estamos acessando a Sophia? Existe Sophia na astrologia? Podemos chamar de Astro Sophia? Quando assim o digo, não estou propondo uma astrologia filosófica, pois o filósofo é apenas um amigo, ou assim o pretende ser, de Sophia. Estou falando de contato direto, o acesso, a percepção, os seus influxos. E os produtos do que os filósofos falam, muitas vezes parecem muito distantes de Sophia. Aqueles que dizem ser seus amigos sempre divergem em seus modelos e teorias. E Sophia é apenas e tão somente uma.

Olhando para os planetas como reflexos daquilo que quero significar, tento dar um sentido ao universo tendo como centro de eu mesmo. Posso assim fantasiar, me iludir, criar mundos, com maior ou menor sofisticação “simbólica”, intelectual ou filosófica. Estarei criando um castelo de cartas, todas com diversas significações tarológicas avançadas. Estarei tentando compreender o mundo a partir daquilo que flui de minhas indagações e investigações.

Porém, nada disso parece refletir a minha Essência. Os símbolos são o que são, não o que o declaro que sejam. Observemos primeiro o que são, antes de falar sobre eles e achar o que sejam.

Por muito tempo, advoguei que símbolo não tem significado. Um símbolo aponta. A experiência que temos com o que vem dele é o que conta. Essa experiência vem como um fenômeno. E a percepção parece ser absolutamente subjetiva.

O subjetivo aponta para o sujeito.

O sujeito deve estar ligado para com a sua Essência. Ou o subjetivo será moldado pela mente, por seus jogos e seus caprichos. Ou olharemos para o objeto e vemos o sujeito. O objeto é o objeto e não o sujeito.

Olhar para o espelho dos planetas é refletir o que impomos a eles.

Tornar-se o espelho dos planetas é refletir o que eles são.

Tornar-se o espelho dos espelhos.

O reflexo do reflexo do reflexo. Os reflexos são infinitos.