quarta-feira, 28 de maio de 2008

Ego

Goya - Prisão Interior


Quem sou realmente?

Essa é uma velha pergunta. Aquela que as igrejas costumam afirmar ter a resposta. Colocam a divindade a qual cultuam no centro e respondem que somos simples criaturas. Olhamos para esse todo despersonalizado, ligado ao que podemos chamar de sociedade, ou um “Eu” coletivo, que se curva perante a moral, a ética, a estética, aos costumes coletivos. Todos seguindo um rumo geral, lutando para se integrarem e tomarem uma posição de destaque nesse mundo que nos foi legado. E que passaremos a frente, via a sempre sagrada família, para nossos descendentes.

Mas... Quem sou realmente no meio disso? Não existe resposta nesse esquema que nos é imposto. Não há como saber quem se é pela vida que levamos. Não há como saber quem se é aceitando essa vida que nos leva a um freqüente desequilíbrio.

Quem sou realmente?

Não é fácil saber. A resposta é individual. Precisa ser buscada individualmente. Lá no nosso íntimo. Em figuras que encontramos apenas em movimentos místicos, em religiões e cultos exóticos, em um mundo que é qualificado como escapismo, ou fuga de responsabilidades, como um ideal inatingível, como um mito tóxico.

Quem sou realmente?

Essa questão está cifrada em textos confusos, em filosofias orientais, nas palavras de gurus, de mestres de coisas estranhas, escritas de formas complicadas, quase indecifráveis, de uma forma que é sempre difícil de compreender. E o que devo fazer para encontrar a resposta de quem sou realmente? Existe algum roteiro? Alguma fórmula? Algum curso? Seminário?

Quem sou não é quem o outro é. Não há como descobrir a si mesmo, apenas olhando o caminho daqueles que encontraram o próprio. Temos apenas linhas gerais do que conseguiram. A narrativa de um estado. O estado que conquistaram ao encontrarem o caminho.

O princípio inicial é aquele em que deixamos de viver apenas para o mundo. Existe uma necessidade espiritual para uma busca. Uma busca que parece sem sentido. Entramos na busca sem saber onde iremos chegar. Até o momento em que a pergunta surge:

Quem sou realmente?

Andando por esse mundo complexo, de procura de si mesmo, vemos que as respostas dadas são insuficientes. Cada um passa por processos individuais, na busca e na procura por quem realmente se é. Perder-se nesses domínios é fácil. Dar voltas e não chegar a local nenhum, também.

Como encontrar a si mesmo? Apenas dentro de si mesmo.

Estudar ajuda. Conhecer o que dizem as diversas escolas, também. Falar com quem superou esse processo, igualmente. Pode ser essencial ou não, dependendo de cada um. Pois somos únicos.

Temos figuras separadas, sempre mal compreendidas, interessantes de serem percebidas em sua integridade. Existe o Self, ou Si Mesmo, o Eu Superior, o Segredo, nosso conteúdo “divino”. O Eu, ou o Puer, a Criança Divina e Solar. O Ego, senhor das Máscaras e da Persona. E a Mente.

É assim que viemos ao mundo.

Quem sou realmente?

Jung dizia que o primeiro passo é a dissolução da Persona. Daí começa o processo de encontro do Si Mesmo. Abandona-se o coletivo, tudo que não é nosso vem para a adequação ao mundo e a sociedade. O Ego impede a manifestação do Si Mesmo. Confunde-se achando que é tudo que existe dentro de nós. Crê ser real. Necessita de atenção para manifestar-se. Atenção tanto exterior, quanto interior. Coloca-se no centro dos caminhos internos. Atrapalha o correto funcionamento da mente. Entope nossas vias com pensamentos inúteis e repetitivos. Perde-se no eterno diálogo interior. Necessita interagir com as pessoas. Não compreende o silêncio, a si mesmo, ou o que existe fora. Não consegue compreender os outros, por não saber quem exatamente é. Olha para tudo como se fosse uma expressão de si. Onde vê, tudo espelha. É incapaz de ver o outro como esse o é, pois não consegue perceber nada a não ser a si mesmo. Não percebe o mundo, a mentira da sociedade, os jogos de poder, a necessidade de ser para os outros.

A grande falácia do mundo é construída por ser dominado por aqueles que não dominam a si mesmos. O ego e todas as personalidades existentes dentro de nós criam um estado de confusão eterna. Um estado de necessidade eterna de expressão, de dramas, de carências, de instabilidades infindas. Todos são apenas projeções. São aquilo que o mundo dos egos projeta. Como tudo que projetam na sociedade, que crêem ser, que lutam para construir. Constroem sempre em nome de algo. Mas esse algo nada mais é do que a própria confusão interna, o mundo sem controle do ego. Aquele vazio estranho, que gera angustia, depressões, medos, inseguranças. O mundo complexo e infantil egóico. Complexidade essa que é apenas aparente.

O ego não foi feito para comandar. É apenas parte e não o todo. E uma parte pequena, apenas uma ferramenta.

Quando o ego se torna o controlador, impõe um reino tirânico que não se mantém. Uma negação do Eu real. Ao mesmo tempo, uma caricatura desse mesmo Eu. Finge ser quem é, em nome de controle. Mas não é realmente. Quando as posturas do ego, normalmente falsas e errôneas, são postas sob pressão, ou questionadas de forma cortante, esse simplesmente reage de forma descontrolada, com o intuito de se preservar. Assim, o ego manipula qualquer forma de auto-conhecimento real. Distorce, absorve, imita, tenta ser. Não o consegue realmente. Cria personalidades de cristal, belas e quebradiças. Inexistentes realmente. Impossíveis de se sustentar, quando o golpe é preciso.

O ego não resiste a análise. O ego demanda toda a atenção. Gosta de ser analisado. Gosta de saber sobre ele. Molda-se para ser aquilo que dizem que ele possa ser. Imita e mimetiza. Faz de conta. Diz que vai melhorar. Diz que vai colaborar. Até o tenta. O ego sempre quer evoluir, melhorar, conhecer mais. Tudo em nome de se manter no controle. Controle que foi cedido. Mas pode não ser eterno.

Quem sou realmente?



Não, não sou essa imagem refletida no espelho. Não sou aquilo que sempre julguei ser. Não sou isso que estou vendo. Lá no fundo dos meus olhos, vejo outra pessoa. Uma pessoa que por vezes aparece em algumas fotos. Pode ser que admire essa pessoa, pode ser que a tema. Não consigo ser indiferente a ela. Em algum local, existe um outro Eu. Em algum local perdido dentro de mim.

Quando aparece essa reflexão, o ego reage. Volta-se contra si. Teme perder o controle, faz tudo para se manter dominando. A parte controla o todo. É a luta do Si Mesmo. O real dentro de si, aquele que é bestial e instintivo, contra aquele que se diz humano, cheio de valores.

E os valores começam a ser quebrados. A moral torna-se um fardo, uma ilusão, algo irreal, criado por irreais. Coletiva, inexistente, uma forma de controle. Algo que o controlador usa para se manter no poder. Moral que cria leis, que rege a sociedade dos vencidos pela parte, vivendo em nome de mentiras, surrealidades, ilusões.

O mundo de ilusões do ego. O mundo irreal coletivo. A prisão real.

Conhecer a si mesmo, é manifestar a si mesmo. É conviver consigo mesmo. Não existe fórmula lógica. Não existe explicação. É ser. Apenas e tão somente. Quem se é, não se expressa. Apenas se é.



Ali no fundo, sentado em uma sala escura, apenas observando, esperando para tomar o verdadeiro controle. Ali está quem se é.

Em volta, o controle de quem não controla. De quem não é. De quem finge ser.

O Puer, a Criança Solar, aquela que realmente conhece o Si Mesmo. Onde o Si Mesmo se manifesta. O fenômeno do Si Mesmo. O fenômeno do Eu Mesmo. Sem crises, traumas, jogos, impossibilidades.

Encontrar ao Eu corresponde a penetrar em um oceano de possibilidades. Algo mais que Quântico. Algo incontável. Descobrir tudo que se é. Tudo que realmente se gosta. Tudo que realmente dá prazer, força, beleza.

Quem sou realmente?

Apenas seja.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Sophia


Existem diversas coisas que o cristianismo (mesmo o gnóstico) esconde, vela e re-vela. O mito de Sophia demonstra a complexidade dessa divindade. A plenitude pode significar algo desconcertante.

A Sabedoria é para os poucos que se projetam para a sua abrangência.

O mito de Sophia

No alto do inefável e transcendental mundo da luz, existia um par primal chamado Profundidade e Silêncio. Juntos, criaram um reino perfeito de equilíbrio e poder criativo, consistindo em trinta formas arquetípicas de consciência chamadas aeons. A mais jovem e aventureira delas, chamada Sophia (Sabedoria), apaixonou-se pelo próprio progenitor real, o grande rei invisível do Todo, chamado Profundidade, e desejousondar sua natureza peremente inescrutável. Confusa por seu amor, lançou o olhar em várias direções de seu posto eterno na plenitude, até que, a distância, vislumbrou uma luz magnífica, tremeluzindo com sublime graça. No espanto originado pelo seu amor, não podia mais distinguir entre o acima e o abaixo e, assim, supôs que a luz sedutora, que na verdade estava abaixo dela, não era senão a real efulgência do grande rei, seu pai, que residia no mais alto ponto dos céus. Desse modo, desceu ao vazio abissal, de onde, num mar de espelhos sem limite e inescrutável, o reflexo da luz celestial acenava para ela. Seu consorte celestial, Cristo, foi incapaz de refreá-la e assim, depois de um amplexo final e doloroso, ela mergulhou na profundeza das trevas, apenas para descobrir como a luz refletida a iludira. Triste e com medo, viu-se rodeada pelo vazio, destituída da qualidade e do poder da Gnose, à qual estava habituada na plenitude. Desejosa de Ter uma figura conhecida perto dela, criou na forma virginal um ser, cujo nome era Jesus. Embora concebido misteriosamente pelo seu desejo da Gnose original, Jesus se uniu, contudo, a uma sombra de escuridão, que se agarrou a ele pelas influências maléficas do vácuo sombrio onde nascera. Logo, Jesus se libertou de seus liames perturbadores e sombrios e subiu a plenitude, deixando Sophia em desalento.

Fora do universo celeste espiritual, sozinha e sem apoio, Sophia vivenciou toda sorte de tormentos psíquicos imagináveis. Paixão, pesar, medo, desespero e ignorância exsudaram seu ser como poderosas nuvens e se condensaram nos quatro elementos: terra, água, fogo e ar, assim como em seres que, mais tarde, ficaram conhecidos com o nome de Demiurgos e regentes (arcontes) – todos eles espíritos ferozes e turbulentos. O mais poderoso deles, um ser com face de leão, cheio de orgulho e desejo de poder, comandou sua hoste de espíritos criadores do mundo e, a partir da matéria-prima de terra, água, fogo e ar, eles construíram um mundo de aparência externa impressionante, embora repleto de grandes falhas, criado à imagem de seu criadores. Pesar, medo, ignorância e outras paixões dolorosas e destrutivas foram tecidos nas malhas desse mundo imperfeito, visto que a matéria-prima de seus fabricantes se originou nos sentimentos experimentados por Sophia. Olhando para baixo, para o mundo imperfeito e conturbado, orgulhosamente modelado pela sua própria prole ignorante, Sophia se encheu de piedade pela criação e resolveu assisti-la como pudesse. Ela tornou-se, então, o espírito do mundo, ansiosamente observando-o, como faz uma mãe quando vela por um filho fraco e malformado.


Enquanto isso, nas alturas, Jesus observava com ansiedade o triste destino de sua mãe Sophia. Ele juntou-se ao aeon-gêmeo de Sophia, Cristo, e assim se tornou Jesus Cristo, o Messias, e mensageiro de Deus. Em volta Dele estavam reunidos todos os sublimes ecompassivos poderes da plenitude, cada um ofertando-lhe presentes e glórias de seus respectivos tesouros. Assim, em Jesus Cristo, a plenitude e seus poderes se reuniram, preparando-o para o grande ato da redenção, a libertação de Sophia de sua lamentávelcondição no vácuo. Incessantemente, as súplicas de Sophia subiram como nuvens de incenso agridoces penetrando o recesso da plenitude, despertando a compaixão de todos os esplêndidos seres aeônicos que perpetuamente contemplam sua glória em seus reinos de perfeição. Através dos séculos e milênios da história da terra, Sophia orou e se lamentou sobre seu destino sobre o destino do mundo imperfeito, e raios de luz seemaranhavam nas redes dos regentes, que como monstruosas aranhas continuavam a tecer teias de matéria, emoção e pensamento como armadilhas para os seres humanos, - em essência, não criação deles, mas raios da própria natureza superior de Sophia, infundidos em corpos de argila.

Finalmente, os poderes da plenitude foram reunidos e, tendo entrado em Jesus Cristo, desceram à terra para libertar Sophia e por esse modo trazer redenção a seus filhos espirituais, os membros da raça humana. Depois de enfrentar as dificuldades impostas a Ele pelos regentes e por seus lacaios humanos iludidos, Jesus Cristo ascendeu triunfalmente da terra, levando Sophia pela mão. Alegremente, subiram às várias mansões do paraíso, batendo nos portais dos guardiões espirituais e conseguindo passagem para regiões mais altas e sutis da existência. Em cada portal, Sophia entoava canções de louvor e gratidão à luz que a salvara do caos de regiões inferiores.

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro


Quando Sophia, o Espírito do Mundo, chegou às margens que separavam os mundos inferiores da plenitude, olhou, mais uma vez, para baixo, para o mundo imperfeito e atormentado, suspenso o vácuo e no caos; seu coração partido mas agora refeito, se encheu de compaixão. Não, ela não poderia deixar completamente para trás aquela estranha criação, aos seus recursos mais que inadequados, nem poderia ela abandonar seus filhos verdadeiros, as mulheres e homens que estavam mais intimamente ligados a ela do que quaisquer outros seres fora da plenitude. Assim, usou seus poderes mágicos e dividiu sua natureza em duas metades: uma, que subiu aos aeons na plenitude para lá residir com Cristo e Jesus, e a outra, que permaneceu próxima a criação, para continuar a assistí-la em compassiva sabedoria. Seu segundo Self, criado pela compaixão, setornou assim conhecido como Achamot, a errante ou a inferior, que ainda está em contato com a humanidade e as regiões desse mundo.

Foi assim que ocorreu com o universo, que se constelou em três regiões. A primeira é a sublunar ou mundo material, governada por um regente que os antigos chamavam de Pan e que outros chamam indevidamente de demônio. Esse regente reina sobre a terra, as plantas e as criaturas vivas. E, como um paciente pastor de ovelhas, vela para que todas essas manifestações da vida de Sophia possam, um dia, alcançar os mundossuperiores, não importam quão longe vagueiem. Desconhecendo as realidades e desígnios dos poderosos aeons de luz, o regente deste mundo meramente gira aroda de nascimento, morte e renascimento, com a esperança de que, se ele e seu rebanho forem capazes de se manter dentro dos movimentos da vida biológica, não serão condenados na hora da libertação.

Mais alto, no espaço imaterial, está o mundo da alma ou da mente, regido pelo arconte principal, também chamado Demiurgo, tendo diversos nomes, inclusive Yaldabaoth (Deus infantil) e Saclas (o cego). É do reino dessa divindade arrogante e sedenta de poder que se originam muitos conceitos e preceitos que escravizam a mente e a vontade humana. O deus cego tem grande interesse no que ele prazerosamente chama delei. Regras, mandamentos e regulamentos de todo tipo são criados por ele a fim de diminuir a liberdade, direito de nascença do espírito. Filosofias e ideologias de diversos tipos também são colocados na mente humana pelo Demiurgo, junto com a ganância, opoder e outras obsessões que obscurecem e viciam a pureza espiritual de homens e mulheres.

A terceira, no mundo acima dos planetas, imediatamente abaixo dos portais da própria plenitude onipotente, é uma região onde Sophia-Achamoth, a mãe celestial e sabia auxiliar da humanidade, está entronizada. Com ela, vivem incontáveis hostes de anjos de luz e almas santas e retas, que antes ocuparam corpos humanos. Este é o mundo do espírito, onde os anjos gêmeos das personalidades humanas também residem e onde a câmara nupcial está construída; onde as almas inferiores dos humanos podem encontrar e se casar com suas contrapartidas espirituais, os anjos gêmeos. Quando os humanos comungam com a Deusa em seus múltiplos aspectos, é com Sophia-Achamoth, a sábia guardiã, que eles o fazem. Sem a consciência desses sutis mistérios, muitos seguidores bem-intencionados da revelação cristã encararam essa forma de Sophia como Maria, Rainha do Paraíso. É assim, então, que Nossa Senhora da Sabedoria, embora redimida e assistindo Jesus Cristo no trabalho de rendeção, está até hoje perto de seus filhos.

As três regiões cósmicas acima descritas têm suas partes correspondentes dentro da natureza dos filhos dos homens. Dentro de cada ser humano, há a parte material (hyle) derivada do reino de Pan, que carrega os instintos e necessidades da vida material, com sua vocação para a sobrevivência e a continuidade física através da descendência. Há também uma parte que personifica a mente e a emoção, referida freqüentemente como alma (psyche). Essa parte é derivada dos domínios do Demiurgo e, portanto, contémmais de uma característica perigosa. Embora seja a sede da consciência ética e da razão calculada, é também suscetível às influências e lisonjas dos regentes, com seus obsessivos mandamentos, ideologias fanáticas, orgulho e arrogância de alma. A terceira é o espírito humano (pneuma), que pertence à plenitude, embora seja um dom de Sophia. Na maioria dos seres humanos, essa centelha espiritual arde lentamente esonha inconscientemente aguardando o sopro dos emissários da plenitude para seres avivadas para uma ação efetiva. Esse espírito é o de Sophia e através – e além dela – é de essência idêntica à dos próprios supremos Rei e Rainha, Profundidade e Silêncio.

Nessa existência personificada, vemos alguns humanos que podem ser chamados de hiléticos, que são regulados por instintos, pelas necessidades e sensações, e vivem, principalmente, no domínio de Pan. Outros, foram chamados de psíquicos e geralmente veneram o Demiurgo como Deus, sem consciência do mundo espiritual acima dele. Seu orgulho e alegria são a lei e a doutrina e se imaginam superiores aos outroshomens, em virtude de suas leis. Dessa forma, a história espiritual da humanidade é, basicamente, uma progressão da instintividade primitiva e do panteísmo de adoração da natureza (onde Pan é teos, isto é, Deus) à religião dogmática e ética, e desta, à verdade liberdade espiritual da Gnose. Para alcançar o reino da luz e se tornar um pneumático, o ser humano deve, primeiro, renunciar ao seu servilismo aos aspectos físicos e, então freqüentemente com grande dificuldade, renunciar também a escravidão do Demiurgoe de seus servos, sob a forma de servidão ideológica. As idéias escravizam tanto quanto as paixões e, ambas, são obstáculos para o reino do espírito. Surge então a grande renúncia (apolytrosis), quando os humanos quebram as algemas fixadas em seus corpos e mentes pelos regentes. De acordo como o exposto, há apenas uma grande passo a ser dado: a câmara nupcial, ou a união transformadora do humano inferior com a presençaprotetora do anjo gêmeo.

Dos cumes do mudo material e das experiências de êxtase da mente, homens e mulheres levantam os olhos e fitam os montes perpétuos do reino de luz espiritual de Sopha-Achamoth. O anjo gêmeo estende sua asa cintilante para a terra e transporta a alma humana para as alturas, até a câmara nupcial, onde a união espiritual é selada em um casamento celestial. Um por um, Sophia atrai seus filhos espirituais para si,juntando-os ao exército dos eleitos. Esse é o Dom de Sophia, extraído do tesouro sem fim de luz e posto à disposição dos humanos pela sua compaixão e sabedoria. Ela, que permaneceu fiel à verdadeira luz, insta seus filhos a fazerem o mesmo. Fidelidade ao espírito que habita os mais profundos e altos recessos de sua natureza os levará, assim, à renuncia da ilusão e a abraçarem o real.

Do livro: Jung e os Evangelhos Perdidos, Stephan A. Hoeller, Ed. Cultrix/Pensamento.
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Pax Pleromatis.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

O Mundo das Cascas

Apenas e tão somente, plástico. Um material artificial e poluente.



Palavras, imagens, símbolos, parábolas, histórias, imaginário e assim por diante... Nada é capaz de nos expressar. Nada é capaz de mostrar nossa verdadeira face.

Há um momento em que não conseguimos mais explicar o mundo e nada que vem do mundo tem o poder de nos expressar. Procuramos em todos os locais, em toda nossa jornada e percebemos que tudo o que estudamos, em todos seus nuances, ritos, formas e elementos, não é capaz de nos colocar diante daqueles que realmente somos.

Enquanto isso existe a busca pelo silêncio, o andar pelas ruas, a procura do isolamento, a dependência de terapeutas, de teorias, de tratamentos, de respostas e mais respostas. Respostas se reproduzem rapidamente. Eles geram questões e mais questões, de formas infinitas, que nos fazem procurar por mais repostas. O olhar para si mesmo é interrompido: Ficamos nas respostas e nas questões. Pode ser que nesses momentos, haja algum alívio. As respostas no aquietam, nos introjetam, nos colocam em um estado reflexivo, até a próxima questão.

A auto-análise é interminável. É perder-se dentro dos ciclos dos ventos internos. Somos o que querem que sejamos. Procuramos novos modelos para nos expressar de formas que acreditamos serem as corretas. Todos os modelos externos, desde os mais simples, aos mais sofisticados. Olhamos para as cartas do Tarot. Olhamos para a mandala astrológica. Olhamos para as rodas xamânicas. Para a sabedoria das runas. Para os psicologismos das Árvores da Vida. Olhamos para tudo e extraímos significados intermináveis. Inundamos-nos de teorias psicológicas. Olhamos para todos os mestres e criadores de teorias da personalidade. Cada um explicando o ser uma forma diferente. Todos sempre certos, cheios de teorias comprovadas e de “curas” miraculosas.

Ali nos enquadramos. Criamos pedestais para aqueles que cultuamos. Inserimos-nos em alguma forma de explicação aparente. Adaptamos nossas máscaras para representarem seus sintomas. Afogamos nossas esperanças em sermos curados das doenças que criamos. Damos forças a elementos externos e nunca entramos no centro do problema.

O problema que nunca existiu.

Todos são capazes de dizer como nos comportamos. A partir de quais parâmetros, de quais meios, de quais estruturas e por fim, como nos tornamos melhores seres. Porém, nada é capaz de desnudar quem realmente somos.

Existe apenas adequação.

E existe o poder de adequar. E esse poder consome e corrompe.

Nos doutrinamos e deixamos aqueles que são cheios de respostas a nosso respeito orgulhosos de nosso trabalho. Mudamos a partir de parâmetros. E ganhamos a atenção prometida. Assim mesmo e dessa forma: De algo além de nós, para nosso agrado.

Reprogramados, estamos prontos para o restante de nossas vidas, plenos de novos significados, que foram dados pela nossa “transformação”. Temos todas as respostas. As questões são explicadas por alguma teoria, ou pela experiência de quem nos dá esse pressuposto novo ser, ao qual vestimos, felizes com uma nova roupa.

Roupa nova terapêutica, roupa nova esotérica, roupa nova religiosa, roupa nova na qual nos apegamos. Sempre nos explicando, sempre sabendo o que somos a partir de algo.

Esse é sempre um algo que não é algo.

Ninguém é algo que o explica. Ninguém é passível de explicação. Não existe percepção a partir de um ponto. Nada que entra na nossa cabeça é real, desde que não venha do centro. O movimento rumo ao centro é único, exclusivo, delicado, intrincado. É um dar de voltas e ir quebrando todos os obstáculos. O destruir da sala de espelhos. O destruir dos espelhos que usamos no rosto. Não podemos mais nos adaptar. Temos de aceitar. Quebrar cada pedaço do que não somos. Descobrir, procurar e perceber cada pedaço que não é o que somos. E estamos cheios de partes que não são nossas. Partes que assumimos, partes que criamos e aumentamos. Imagens inexistentes. Apenas uma sucessão de imagens. Apenas reflexos em um local desolado. Projeções dependentes. Projeções de seres dependentes. Cascas infinitas auto-geradas pelo nada. Cascas que vivem pelas cascas. Cascas que se relacionam com cascas. Cascas animadas. Fúteis cascas. Infelizes cascas. A maioria absoluta dessas cascas crê existir.

Realidade...

O que é a realidade, quando se percebe o mundo das cascas ambulantes, que pensam serem algo verdadeiro? Várias dessas cascas existem apenas para decorar o ambiente. Vazias, andam pelas ruas procurando enfeites, para agradar outras cascas. Inertes, seguem os ritmos da mente coletiva, acreditando saberem algo. Irreais, apenas são proteções para esconder o que as gera. Cascas que se parecem com máscaras.

Máscaras que geram máscaras e que não dão opção de escolhas. Escolhas estão além das máscaras. Máscaras não são capazes de decidirem por si mesmas. Apenas seguem a corrente. Seguem o fluxo do grande rio das máscaras. Aquele que desemboca no oceano da Morte. Morte que provoca o medo. O medo que faz com que o gerador das máscaras saiba de seu inexorável destino. O medo que escancara para quem possa ver além da sujeira que é o mundo das máscaras, a grande fantasia do mundo.

Um dia tudo deixa de ser. Podemos acessar a aquele que está além das máscaras, além da busca interminável de segurança, da angústia eterna, do medo que consome, da insegurança que desconsola, do vazio que exige explicações e respostas, dos modelos que não são capazes de dar a paz, da inconstância dos ventos que nos desnorteiam, da incapacidade em tomar as rédeas da própria vida.

Ou podemos viver de hedonismos, de satisfações putrefeitas, esquecer de pensar sobre nós mesmos e simplesmente esperar. Um dia a foice sempre chega. E nesse dia não passamos de mais um nome numa lápide.

Um nome que vai ser apagado com o tempo.