quarta-feira, 23 de julho de 2008

E se...


E se me pintasse com a mais fina maquiagem, unido as formas de meu rosto como a de um palhaço? E se fizesse isso para parecer humano? E se trocasse de pintura diante de cada olhar faminto? E se, com minha máscara, mostrasse a sua máscara? Pois olhando para todos, cada um só vê a si.

E se eu soubesse o que esconde? E se a pintura em minha cara fosse a sua perdição? E se, cada traço que desenhei for estampar a sua incompreensão? E se, olhando para minha pintura, perdesse o olhar de tudo e ocorresse o estampar da sua loucura? E se, descobrisse que a sua ordem é aparente? E se, sendo eu um louco palhaço, o fosse só para que pudesse entender pouco mais do que nada, do que não olhou aí dentro?

Que loucura é essa que aparece do nada? É sinal de que me reconhece? Que teme o que vê e chora as lágrimas que nunca darão absolvição? E olhando para si, teme descobrir quem é? Que luta para ser normal nos limites da sua loucura? Que se torna demente tentando encobrir a sua diferença? Que aquilo que chamam de normalidade é uma jaula em um manicômio? Que a sua máscara é uma camisa de força?

E se, olhando para meus olhos alucinados, visse o que existe dentro de si? E se essa alucinação for sua? E se eu souber disso? E se brincar com seus brinquedos, que chama de vida? E se, zombar de seus valores? E se, rir daquilo que chama de responsabilidade? E se, por um mero acaso, ver que minha sátira é certeira?

E se, vendo sua imagem no espelho, ver apenas o palhaço louco? A alucinação de seus gestos, a distorção das imagens que julga verdadeiras? Meu rosto não é meu. Minha face não pode ser vista. O que olha em mim, sua mente não classifica e sua consciência rotula. Minha risada é do que não compreende. Olho a você e nada vejo, só uma caricatura tentando ser séria.

Irei gargalhar de seus trejeitos, que não são seus, apenas imitação. Rirei de suas prioridades, de suas necessidades, de sua mania de ser normal. Rirei de seus rótulos e mais ainda do que pensa a respeito de todos. De suas manias de grandeza, iguais a todos o que querem ser enormes.

Não aceitarei seus valores, nem suas moedas. Nada há para trocar comigo, pois não enxerga em mim o que não pode usar de meu. A pintura não é minha. A máscara não fui eu quem desenhou. A face é você próprio quem estampa.

O palhaço que tanto ri...

Onde está a graça?

Do que ele ri? De forma insana e interminável? Estridente e macabro? Seria, loucura?

Será você a me dizer o que é sanidade?

Qual o motivo de estar tão sério?

Rirei até seus ouvidos doerem. Onde está a piada?

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Mentiras


Permanecer em si sem olhar para fora. Tender ao centro é olhar para fora de si e ver-se conforme se é. Prender-se no que se acha que é, naquilo que aceitamos ser e que não corresponde ao que somos, é entregar-se a confusão de tudo que pensamos saber. Pensamos saber sobre nós, sobre os outros, sobre tudo que nos cerca, sobre cada coisa que podemos ver. Não temos a devida percepção e nos iludimos com o queremos ser, pensar, achar, crer, as experiências que tivemos, o que vivemos, o que compreendemos de tudo que se passou. E fomos todos enganados. Enganados por quem nos tornamos quando nos afastamos do centro. Acreditamos ser algo que não é real. Acreditamos tão fielmente, pensamos ter tanta certeza disso, que começamos a mentir e a ter certeza. Personagens dominam os atores, tomados pelo êxtase de negarem a si próprios e se misturarem com a máscara cênica. O amor pelo palco, pelos aplausos, por ser o centro das atenções e fundamentalmente, reconhecidos.

Vamos nos iludindo com as ovações e as vaias. Seguimos o roteiro legado. Assumimos os papéis, confundidos com eles, seduzidos pelas mercadorias existentes. Só conhecemos o que é comercial, o que pode ser vendido, enlatado, simplificado e monetarizado. O valor de tudo que temos deve ser expresso em termos financeiros e de pseudo-desenvolvimento pessoal. Quebrar a casca do mundo ilusório representa negar os desejos coletivos. Aquilo que é dado como tendo valor, ou belo, ou invejável. Escapar de tentar ter um papel reconhecido pelo coletivo. Nos fixamos nesses scripts e vivemos em sua órbita, sedentos por suas benesses, reconhecimento e suas projeções. Lutamos para sermos inseridos, não importando qual seja o custo e as distorções assim associadas.

Sustentamos coisas em nome do que nos programaram longamente para tentar ser. Mesmo não sendo. Mesmo não tendo relação alguma com ser isso ou aquilo. Sem ter noção do custo ou da frustração. Mantemos sempre as aparências, em nome de manter o que nos impõem. Sempre nos justificamos, criamos formas de provar a todos que somos parte. Justificativas nem sempre verdadeiras. Nem sempre reais. Nem sempre justas para conosco. Mentiras a respeito de quem somos. As criamos para acreditarem o que querem que sejamos. Para sermos pessoas enquadradas e respeitadas. Para continuarmos na nossa miopia, segurando papeis que não nos pertencem. Mentimos para o mundo. Mentimos para nós. Acreditamos em nossas mentiras. Nos tornamos a mentira. Transformamos em verdade.

O custo da mentira é a negação de qualquer forma de contato com o Centro. Descobrir-se diferente deve ser evitado a qualquer custo. E o custo é alto. É sustentar um peso inacreditável em nome do que pensam de nós. Em nome do que pensamos que somos. Do que lutamos veementemente para sermos, mesmo que nos faça mal, que seja doloroso, que seja um enorme sono que nos conduz a girar em torno do que nos seduz.

Criamos um mundo de fantasia. Cremos em capacidades que não temos, temos certeza de que um dia as coisas irão melhorar. Melhorar em que sentido? No sentido de que nossos planos, sempre coletivos e programados, sejam realizados. Em sermos mais plenos de algo que nos disseram ser plenitude. De termos a felicidade de ter algo que não é nosso. De nossas infantilidades perante o mundo que não nos deixa amadurecer. De crer em um mundo melhor baseado em nosso compromisso com todas nossas mentiras pessoais. Mentimos para o mundo. Todos também mentem. O mundo mente e respondemos com mentira.

O cheiro do que está escondido é como um enorme esgoto a céu aberto. Não há como esconder, a não ser pelas mentiras coletivas. Pelas crenças coletivas. Pelos comportamentos coletivos. Não há como negar-se para sempre. Mas há como coibir a manifestação de quem somos em nome de um bem maior. Em nome de nosso comprometimento com a família. Com a vizinhança. Com a moral. Com os bons costumes. Com a religião. Com nossos deveres.

Mentiras. Formas de esquecimento e desvanecimento em um limbo que desaparece com todas as nossas memórias. A autonegação deforma, degenera, tem um preço muito alto. Consome aos poucos, somatiza, nos confunde. Criamos visões de quem somos, coisas que achamos que sabemos sobre nós. Não percebemos nada a nosso respeito e vivemos em confusão constante. O doloroso não saber em nome do manter as mentiras. Negamos que somos em nome de mentir a respeito do que queremos ser. Nos apegamos as mentiras. Criamos justificativas enormes para sanar nossos erros, que podem ter sido acertos. A dor é escondida. As feridas não cicatrizam. Nos sabotamos constantemente em nome de algo que não é verdadeiro. Em nome do grande código de aceitação.

Somos conectados no sistema e doamos a ele tudo que temos.

Brincamos de sermos rebeldes, sendo diferentes da forma como todos o são, quando querem negar o controle. Formas de transgressão coletiva são formas de controle e de dissipar quaisquer mudanças. Cremos que somos, nos engajamos, damos tudo que temos para sermos. E sofremos tudo que podemos em nome de sermos ninguém.

Não há como ser nos deixando de lado. E, ao aceitarmos a conexão com o sistema, achamos ser melhores e superiores a todos os outros. Ou, inferiores aos que nos cercam. Distorções para nos manter. Distorções que aceitamos para mantermos. Todos dependentes, todos ligados.

Eu minto a você dizendo quem acho que sou. Você me seduz mentindo a mim sobre o que acha que sou. Alimenta minhas ilusões, faz crer que sou o que menti a todos. Suas mentiras se misturam com minhas ilusões. Cada vez mais me afundo em minhas fortalezas, protegido da realidade, do que está lá fora. Quando mais entro em mim, menos me vejo. Perco-me no fundo do que penso ser, do que me dizem que sou. Nego qualquer outra programação, errônea, o que é real. Creio no que imaginei, em meu mundinho pessoal. Vou me perdendo, criando e criando.

Alguns mentem para mim, dizendo que sou outro, aquele que pensam que sou. Ou me envaideço em minhas mentiras e nego. Ou aceito a mentira e a dominação alheia. Você mentiu para mim, disse que era o que pensava que eu seria. Eu minto para você, pensando ser o que digo. Como não sei quem sou, não mantenho meus compromissos com a mentira coletiva. Eu o decepciono, você me engana e me sinto traído, já que você também não sabe quem é. E assim as mentiras sobre as mentiras se criam. As justificativas pelos abandonos, pelas brigas, pelos desentendimentos. Mentiras para justificar as mentiras.

Mentem para nós, dizem coisas para nos agradar, para nos afundar em nossas mentiras. E vamos nos perdendo, perdendo, desaparecendo. Um casulo que nunca trará a transformação. Livres das tempestades, de tudo que nos possa ver. Cegos e à deriva.

O custo é sempre muito alto. Perdemos a individualidade mentindo ao coletivo que somos individuais.

Jogar-se

Jogar consigo mesmo. Ficar preso nas próprias palavras. Ficar preso nas próprias justificativas. Estar diante de si e longe de si. Cada um cria a própria dor. Cada um tenta criar a própria felicidade. Jogam consigo mesmo. Brincam de tentar entender, procuram saber algo, mas não muito, a respeito de cada um como é. Cada um jogando e nunca vencendo. Cada um perdido no absurdo movimentar de cada peça. Nenhum instante revelador. Apenas o movimentar eterno em si, sem ganhar nenhuma posição. Frente a frente com o espelho, sem considerar a própria imagem. Apenas observando e jogando, sem nunca deixar-se.

A visão além do jogo pode ser desesperadora. Olhar a si e perceber a inércia do mundo em cada movimento é um estado indesejável. Cada um é escravo do que cria, do que deseja, do reflexo que criou. Servos impotentes dos mecanismos de inserção. Tão dependentes das relações como de respirar. Cada um jogando consigo mesmo, sendo adversário de cada parte sua.

Peças que se movimentam pelo tabuleiro interno que se reflete a tudo em volta. Cada peça impedindo o deslizar de outra. Cada jogada fecha a possibilidade de um ataque. Sem ter como abrir o jogo, cada posição protegendo outra. A peleja nunca será vencida, pois o esforço é para manter firmemente cada posição. As relações vão se intrincando e cada um mergulha para garantir cada pedaço para si. Os jogadores se interpenetram. Cada um move-se em simetria. Não há como vencer o jogo, apenas estar ali para o resto da vida, lutando para não perder espaço para o outro. O outro que não é outro. Apenas partes fragmentadas de si que movem-se pelo tabuleiro.

A disputa consome cada um em cada instante. O Tempo devora os jogadores e as peças. Jogar consigo mesmo causa a perda. Perder-se em si, dentro de si estando apenas fora de si. O que é fora é como o jogo dentro. Cada peça se move conforme nos estagnamos em nossa vida que não se movimenta. Quanto mais progresso pensamos ter, mais presos aos movimentos de nosso jogo. Somos eternos adversários, de forma oca, perdidos na falta de pensamentos do que planejamos como nossas supostas metas de vida. Presos no circular do mundo e jogando conosco. Criamos nossas mazelas, nossos problemas, nossa dor. Sofremos a danação eterna do inferno pessoal. Circulamos pelo tabuleiro, brincando com nossos destinos. Perdidos no quanto somos mesquinhos. Presos dentro do tabuleiro.

Não há saída do jogo. Nenhuma parte irá vencer. Olhamos fixos para cada jogada sem conseguir alcançar nenhuma posição favorável. Cada lance é estar perdido no tabuleiro. Sem conseguir desviar a atenção para o que interessa e para a imagem distorcida perante o espelho.

Não iremos longe com esse jogo e estaremos ali indefinidamente. A cada dia o Vazio está à frente. Estamos entretidos conosco, em um dialogo interior infindável, entre as vozes das peças que se movem presas na inércia de tudo. Não somos capazes de saltar no vazio. No lúdico de nossas ilusões. Pensamos estar jogando com o mundo, estarmos além dele e termos controle. Não temos nada, apenas o relógio contra nós eternamente a cada jogada, pedindo um simples movimento além do tabuleiro.

Não há ganho, apenas jogo. O jogo pelo jogo. Presos dentro de nós sem olhar para dentro, vendo tudo que existe ao redor, para os outros, esquecidos na grande teia que nos consome.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Sementes




Certa vez, li em um texto de uma amiga que já se foi, uma frase que achei muito interessante:

“Parar de lutar com o mundo para deixar de lutar consigo mesmo”.

Essa foi uma amiga que se decidiu por se aproximar devido a um texto meu. Eu havia escrito em certa ocasião de minha vida, quando resolvi dar uma resposta para algo que ocorrera em determinado momento, com relação a diversas pessoas.

Há algum tempo fui reler esse material. Lá se foram seis anos desde sua composição. E lá no meu texto, está a frase:

“Parar de lutar com o mundo para deixar de lutar consigo mesmo”.

Foi uma semente. Uma semente que na época lancei sem compreender exatamente o que expressava ou o quão importante seria no futuro reencontrar.

São as sementes que o Self planta em nossa via. Uma semente que fez sentido para uma pessoa que me ensinou diversas coisas e me aprofundou em tantas outras. Uma semente que hoje fez sentido quanto a vários outros elementos.

Nem sempre compreendemos algo em seu nascimento. Apenas depois que reverbera. A frase foi o inicio de algo, que hoje se findou. E é a semente de algo que vários anos depois consegui finalmente absorver completamente.

Lutar com o mundo para lutar consigo mesmo




A maneira como trato o mundo é a maneira como me trato, enquanto estou sob o domínio do coletivo. Estar dentro do coletivo é estar sujeito a toda a escala de regras de relacionamento. Ser dependente do sistema significa agir como o todo, de forma inconsciente, seguindo a maré, esquecido de Si Mesmo, como um barco à deriva. Quem luta contra o mundo, tentar lutar consigo. Agredir ao mundo é agredir-se. Tratamos o exterior da mesma forma como nos tratamos, até termos a percepção de quem somos. Antes, na maré da inconsciência, deixamos de ser, para estarmos conectados com todos os outros. Nos adaptamos ao ego coletivo. Assumimos seus valores, suas formas, suas maneiras e vivemos para sermos apenas mais um, igual a todos, esquecidos de quem somos.

Agredir ao meio é agredir-se. Criamos máscaras de ataque, comportamentos inadequados, formas agressivas. Rimos do mundo, mas ainda pertencemos a ele. Desprezamos o que nos cerca, mas somos parte disso. Usamos de cinismo a todos que nos cercam, os menosprezamos, os achamos idiotas, menos capacitados, inconscientes, perdidos. Sem a consciência de Si Mesmo, olhar ao outro é criticar a si próprio. Agredir aos que nos cercam é agredir-se. O mundo não é o foco. Os outros não são a medida. O efeito do criticar é apenas um estágio inicial. Perceber o outro é um inicio de perceber a si mesmo. Apenas o início.

Não posso culpar o mundo pelo que não realizei. Só posso tirar de mim as respostas. Quem sou e o que consegui estão em mim, não no mundo. Sem a percepção de quem sou, não há como saber até onde realizei, consegui, progredi, me perdi. Não é pelos valores e objetivos coletivos que irei perceber até onde poderia ter ido. O mundo não é medida para quem sou. O mundo não é medida para meus sonhos. Nem para meus objetivos. Não posso querer seguir as expectativas de todos. Tenho de descobrir o que vive em meu íntimo, para saber o que realmente quero.

Quem não sabe o que quer, deseja o que todos têm. Se todos não sabem o que querem, podem ser programados a desejarem algo que foi manipulado como objeto. Como sentir o que vive no íntimo e saber quais são os seus reais desejos? Como descobrir onde está o próprio centro, além do centro do mundo? Quebrar a ilusão de que sabemos o que queremos, enquanto procuramos o que todos procuram. Não saber é dependência. É procurar quem dê as respostas e viver para tê-las de alguém, ou qualquer outro algo que não seja apenas quem somos.

Ouvir as respostas para nossas necessidades espirituais e ser guiado por algo coletivo é perder a própria essência. Uma forma de controle apurado, impingindo um comportamento adequado perante o coletivo. O coletivo necessita de ser organizado para continuar funcionando e para nutrir a todos que são dependentes dele. Quanto mais mesclados com o sistema, mais inconscientes e distantes de nossa essência estamos. Precisamos do coletivo para tudo. Para sabermos o que fazer, para estabelecer nossas metas, para sabermos como nos portarmos, qual aparência devamos ter. Não existimos para nós, somos apenas replicas que funcionam automaticamente sem sentido algum.

Manter-se conectado custa muita energia. Damos tudo que temos ao coletivo. Cedemos esperando ter tudo em troca. Estamos no mundo e pertencemos a ele. Somos dominados conscientemente. Necessitamos de amparo dos outros que nos cercam para nos sentirmos seguros perante tudo. Tememos que o sistema se desligue e não temos coragem para ficarmos longe do controle. Não temos autonomia. Não sabemos nos guiar perante as ilusões coletivas. Não somos capazes de nos opormos perante a tudo que nos cerca, pelo tanto que somos dependentes. Nem tão pouco conseguimos amadurecer perante o mundo. Temos sempre reações de dependência infantis, reações ocas e sem percepção alguma do que nos cerca. Reações mantenedoras do mundo coletivo. Controles sobre os nossos sonhos reais. Controles de comportamento e opinião.

Controles e dependência. Cada um se torna tão dependente que é capaz de lutar e matar em nome do sistema. As saídas estão sempre fechadas. A única porta é a interior. Encontrar a liberdade do mundo é um despertar. Pode significar o encontro com outra forma de controle. E de onde deveremos despertar novamente. O mundo em cascas, onde vamos nos dissolvendo continuamente. Perdendo as cascas e despertando e perdendo as cascas e assim sucessivamente.

Sucessivas espirais de encontro com o que está além. Visões diferentes das coisas ao entrarmos nas câmaras interiores de si, guiados pelo fio de Ariadne. O labirinto do labirinto. Cada labirinto mais exterior ao outro. Cada vez mais libertos do que nos torna iguais aos outros. Menos conectados ao Todo que se movimenta em uma enorme teia, dependentes um do outro, seus destinos ligados, suas vontades em nome do Bem comum.

Compreender a individualidade parte da percepção do que nos diferencia de qualquer estrutura coletiva. O Bem comum, aquele que nos torna iguais a todos em espírito, é também uma forma de controle. A espiritualidade de massa, o correto para todos, o aprovável, o perceptível, o caminho da humanidade. Formas elaboradas de descaracterização. Onde existe luz em abundancia, existe cegueira para ser distribuída.

É muito fácil ser seduzido por falsos resultados que criamos. Cairmos em nossas ilusões. Em nossas necessidades de auto-afirmação. Nos tornamos o fruto de nossa auto-importância. Seres transcendentes que pensam compreender as coisas e que querem transmitir para os outros o progresso que recebemos.





O mundo controla as saídas. Nos seduz a despertar dentro dele. Nossa luta com o mundo pode ser apenas algo manipulável.Uma forma de perder energia para a busca de Si Mesmo. Nossas inadequações, revoltas, tentativas de revolução. Coisas que são sempre absorvidas e adaptadas em novas formas de controle coletivo. Elaborações novas. Apenas códigos mais complexos para nossa virtualidade. Quando nos dizemos livres, estamos novamente presos.

Uma coleira chamada liberdade.

Dogmas não podem dizer quem somos. O coletivo é para o coletivo. O que está para todos, não está para ninguém.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Espirais



Diz a tradição do sufismo, que cada verso do Alcorão tem 40.000 interpretações.

O movimento que vai do círculo ao centro corresponde a uma espiral dupla. Quanto mais se compreende o que está dentro, com a espiral que tende ao ponto central, mais se compreende o que está fora, com a espiral que parte do centro. Ir ao centro é multiplicar as percepções de si, vendo-se sobre diferentes formas. As percepções vão se alterando e mostrando diferentes faces de cada parte nossa. Os sentidos vão se alterando. As compreensões tomam coloridos multifacetados, enquanto vamos indo cada vez mais de encontro do centro da espiral. Quando mais distantes dos domínios do ego, melhor percebemos tudo em nosso interior. Tudo faz um sentido diferenciado, eqüidistante, equilibrado, mesclado com a ontologia do Si Mesmo. Existe um controle natural das coisas com todo o sentido do reencontro. O reencontro vai alterando as cores, as formas, as estruturas. O reencontro vai se tornando o centro. O centro gira como um dervixe. Tudo que existe dentro de nós executa em um movimento circular. Todos os elementos se tornam como planetas em torno do Sol. O que sabíamos não sabemos mais. Revemos o que achamos saber sobre qualquer coisa. Todas coisas mudam de forma. As formas deixam de ter forma. As formas voltam a se plasmar. A percepção capta através da própria transformação.

Ondas partem do centro modificando os olhos dentro do círculo. Refletem-se por todo o ser e voltam ao centro, captando novos movimentos. Toda a dinâmica com o movimento das ondas é alterada. Cada nova onda gera formas diversas e dissolve elementos estranhos. As ondas partem conforme os ciclos próprios, mesclados e em sintonia com os ciclos dos céus e da natureza. Tudo em órbita. Estamos em órbita com o que temos relação. Os fluxos partem do externo, penetrando pelo Self que espalha e gera as espirais internas.

A energia é espalhada como uma dança. Cada parte nossa se movimenta. Nada mais é como antes. Vamos entrando no centro, atraídos pela gravidade de nossa essência. Procurando o ponto aonde todas as compreensões vão tomando um sentido maior. Mais próximos do centro, mais as multifacetadas informações vão se tornando e deixando sua complexidade de lado. O todo vai se tornando e vamos deixando de lado nossas partes que não se movimentam em toda nossa teia interna. Conhecendo cada vez mais quem somos. Desmontando o que achávamos ser. O que não somos é deixado de lado, juntamente com os elementos que criamos para essa inexistência. Não existe sentido ali, nem necessidade alguma.

A gravidade do ponto central deixa de ser apenas nossa meta. É o que nos motiva, até o instante em que inexiste. Não estamos mais tendendo. Fluxos do Self invadem nossa existência. Tudo circula, caminhos são abertos. O Eu Central toma seu lugar e restabelece seu controle. Para e contempla a própria essência. Recebe seus influxos e se torna uma manifestação total. Os significados vão se alterando. Deixando de ser significados. A análise de si vai perdendo o sentido. As possibilidades vão aumentando. O encontro é total. A visão interior vai entrando na espiral, que vai liberando o restante de quem somos. Cada parte é conectada e somos cada vez mais unificados. Não diversas vozes de elementos estranhos, mas o centro que comanda todo o círculo. Do centro parte o que somos. Deixamos de procurar e começamos a ser. Não acreditamos mais, partimos para exercer. Sabemos quem somos. Sabemos o que fazer. Nada mais em nós é diferente. O sentido é o que nos norteia. Somos fiéis a quem somos.

Não existe diferença.

Não existe diferença dentro de nós. Tudo se expressa da maneira como somos. Não somos o que querem que sejamos. Não somos algo para agradar a ninguém. Não somos o que não somos. Estar no centro é ser quem se é.

Não existe diferença entre nossas vidas. A vida material é una com nosso interior. Reflete totalmente o que temos dentro. Nossos enganos para com o mundo são deixados de lado. O mundo deixa de ser reativo ao que não somos. Sabemos nosso local no mundo. Sabemos nossas relações com todas as facetas de nossa vida. Compreendemos aqueles que nos cercam e cada instante de nosso passado. Tudo começa a se tornar uma linha, uma corrente, um fluxo, que desemboca no instante presente. Conseguimos nos enxergar através do Tempo.

Não deveria existir diferença entre quem fomos no passado e quem somos agora. As cascas criaram as diferenças, vidas diferentes numa mesma vida. Partes diferentes de uma mesma essência. Pedaços soltos de um quebra cabeças que não fazia sentido algum. As peças se unem. As que não existem e que criavam um ser esquartejado são descartadas. Personalidades estranhas deixam de existir. Mentiras que criamos para nós desaparecem.


Não é mais possível mentir para Si Mesmo. Quem somos não pode ser negado. Por mais que tentemos criar coisas inexistentes. Por mais que acreditemos ser o que não somos. Por mais doloroso que pareça olhar-se. Poucos são os que tem a capacidade de olhar-se. De ver quem são realmente. Que a vida que escolheram é mentirosa, que é inexistente em si. Alguns deparam alguma vez com a imagem da máscara no espelho. Por alguma surpresa, por alguma procura espiritual, por algum motivo ligado aos ciclos internos. E esses se desesperam, fogem, negam, correm e fazem questão de esquecer. Poucos são os que têm a coragem de encarar a máscara e tirá-la do rosto. De vencer as ilusões, a imaginação, as mentiras, o coletivo, os contratos, as dependências, o mundo.

Querer manter as mentiras e tudo que criamos para não sermos quem somos começa a nos sabotar. Manter o castelo é doloroso. Deixar-se de lado é tóxico. Vivemos de desilusão a cada momento. O que queremos ser se volta contra o que temos de ser. O que somos começa a sabotar o que nos nega. Nos tornamos inimigos, nossos inimigos. O cheiro de nossa podridão começa a aumentar. Os mecanismos para mantermos os outros sob controle, jogos de poder para com os outros são paralelos com os que aplicamos em nós. Tentamos repelir as emanações do Self. Mudamos de assunto, não queremos ouvir a ninguém que negue quem achamos que somos. Vamos criando uma casca protetora e agressiva para manter o castelo. Tentamos enfeitar esse castelo para parecer um palácio. Mas para quem negou o mundo do ego, esse castelo é apenas uma pocilga. Não há como negar quem se é para quem sabe quem ele próprio é. Nossos esquemas de enganar a todos e de nos tornarmos agradáveis e sedutores, ou de mostrarmos o quanto somos superiores aos outros, é apenas algo nojento aos olhos de quem se vê. Não há como enganar. Só enganamos a nós mesmos e a quem se engana. Pois todos estão interessados em apenas manter as aparências e a conquistar o que qualquer um que se engana consegue. Manter a mentira, o erro, a vida sem rumo, ter os objetivos que a sociedade impõe. Os objetivos de todos não são para nós. São para os que querem algo da sociedade. E o que a sociedade quer é submissão. E ser submisso e respeitador das leis e das tradições seculares, é o que todos querem. Assim, lutam contra o Si Mesmo. E essa luta é desigual. Pois tudo que parecemos fazer é incapaz de nos trazer o que todos almejam, a felicidade, o sucesso, o amor e assim por diante. Procurar isso acaba sendo a meta. Sempre de forma mesquinha. Sempre por migalhas. Sempre ganhando muito pouco e dando absolutamente tudo de si. É uma busca interminável, um caminho em círculos, um amontoado de nada, em nome de nada. Enquanto os anos passam e devoram. A vida foi um andar em círculos, sem chegar a local algum. Círculos e círculos e círculos. Apenas girando longe do centro. Sem olhar para ele. Olhando apenas para fora. Quem se é, uma imagem distante. Todas as migalhas que ganhamos nessa vida sem rumo, são tomadas de assalto por qualquer tempestade. O furacão de forma espiral é capaz de levar tudo em instantes. Não temos nada fora do centro. Não temos o que nos ensinaram e domesticaram para ter. Não temos bens, nem saúde, nem amores verdadeiros. Nossos relacionamentos se baseiam em projeções. Não conhecemos as pessoas com quem vivemos. Achamos que sabemos com quem estamos e sempre nos enganamos. Pensamos conhecer o outro. Pensamos que amamos. Pensamos que somos amados. Falamos que amamos o outro por conveniência. Vivemos com o outro para termos atenção. Sustentamos um relacionamento por egoísmo. Nunca amadurecemos para saborear uma relação de confiança. Temos alguém para os outros. Criamos compromissos para satisfazer a família. Criamos uma família em nome de algo maior, mas falso e destruidor. Não somos capazes de amar o outro. Vemos no outro apenas quem gostaríamos de ser, ou o que gostamos em nós. Tudo o que projetamos é parte do que achamos ser. Tudo o que vemos em alguém é ilusão. Nos apaixonamos por irrealidades. Toda a paixão é finita. Não se mantém, pois é olhar no espelho e enxergar cascas. Quem não conhece a Si Mesmo não é capaz de expressar totalmente o que significa o amor. Não existe ligação entre cascas. O outro espelha o que existe em mim. E mais cedo ou mais tarde, o meu pútrido vai se espelhar. Não serei mais capaz de estar com quem mostra o que existe de podre em mim. Procuro outro para nele ver algo bom do que gostaria de ser. A busca é interminável. De pessoa em pessoa vendo algo que não existe. Procurando eternamente pelo que não existe. Enquanto não espelhar nada no outro, não serei capaz de ver essa pessoa. Não serei capaz de escapar daquilo que o outro esconde. Não serei capaz de me apaixonar pelo outro e não apenas por aquilo que me ensinaram a almejar.


Não existe diferença. O outro é meu abismo. O outro só é meu quando o domino. Preciso de ter alguém. Ter como uma mercadoria que vendem por aí. Pensamos que amar é possuir. Que o outro é nosso. Que precisamos ter a alma do outro, pois apenas o relacionamento é pouco. Não somos capazes de conquistar a nós mesmos, quanto mais ao outro. Não temos domínio sobre o que somos. Temos de nos adaptar para sobreviver, para sermos aceitos. Nos vendemos muito facilmente. Compramos e dominamos por “amor”. Somos comprados das formas mais vis. E cada vez mais vamos perdendo o rumo de quem somos. Deixando-nos de lado em nome de um todo maior. Fazemos questão de cortar o contato com o centro. Até quando as coisas fogem totalmente de controle. Ou entramos nos estados mais depressivos possíveis, onde literalmente nos destruímos, ou lutamos para manter as aparências. Tudo vai depender de como gostamos de nos destroçar. Segurando o mundo nas costas e envelhecendo de forma anormal, vivendo uma vida de não vida. Entrando na loucura da intensidade total, para vivermos nossa auto-destruição. A podridão do mundo definitivamente nos contaminou totalmente. Ou, mais simplesmente, vivemos sem olhar para nada, achando tudo belo e incapazes de dizer que existe algo que não é bom. Tudo tem de ter um sentido de amor no fundo. Tudo tem de ser divino. Nossos enganos, nossos erros, a luta para nos mantermos inconscientes. Nos tornamos dependentes do sistema para podermos respirar e longe do centro. Lutamos pelo sistema, pois esse parece capaz de nos afastar da loucura que ele mesmo nos colocou. Somos totalmente ligados aos valores da sociedade para nos afastarmos de nossa luta. O que podemos ganhar com o coletivo é um desejo para apaziguar nossa dor que não podemos sentir. As feridas aumentam. Começam a nos devorar por dentro. Chegam a somatizar e a se tornarem doenças físicas. Escolhemos nossa morte. Criamos nossas dores. Ilusões se tornam realidades. Criamos doenças e traçamos nosso fim. Viver para o mundo tem seu preço. As feridas ganham vozes. Falam por nós. Lutamos contra elas. Lutamos contra as feridas. Lutamos contra o Self. Lutamos com o mundo para lutarmos conosco. Nos tornamos revoltados com nossa situação, como com o nosso insucesso. Achamos que nos perseguem, vemos todos como inimigos. Temos certeza de que todos nos invejam, que cobiçam o que temos. Sempre precisamos provar tudo para as pessoas. Precisamos chegar lá, subir até o topo, vencer a todos. Nada é suficiente. Tomamos coisas dos outros. Coisas que nem aos outros é dado. Tentamos vencer a tudo. Acabamos sendo agressivos, violentos e covardes. Queremos vencer, mas temos medo de lutar. O que existe dentro de nós nos consome. Tentamos lutar lá fora nossa luta interior. A luta inútil. A luta contra Si Mesmo. É uma luta desigual. Onde o ego não cede, onde seu domínio vai gerando incompreensões infinitas, pois mais positivo que ele queira ser.



E assim olhamos para as pessoas como caixas de ventos. Ocas e sem serem capazes de olharem para dentro. Aqueles que ficam horas diante de um espelho se embelezando sem conseguirem se ver. Que cultuam a própria aparência em nome do outro. Que não conseguem ter a vaidade por ela em si. Que não sabem o que é o belo, apenas o que é da moda. Que não são capazes de criarem algo próprio. Ou tem vergonha do outro, ou querem sua atenção total.

Aparências, apenas isso. Não existe diferença.

Desfazer as mentiras que contamos a nós mesmos é uma chave para o encontro com o centro. Cada uma delas fornece uma compreensão, como um jogo de charadas quando vão sendo desbaratadas. É parte da desconstrução que vai formando uma espiral para o centro. A recriação de si, pelo desfazer. Algo é desmontado. Outras coisas vão putrefando. Primeiro vem a foice do Tempo preparando o caminho. Resolvendo todas as questões necessárias, desmantelando elos das correntes. Os ciclos se alinham. O exterior vai se quebrando. Não reconhecemos mais o mundo, nem nos reconhecemos nele. O tempo é chegado. Inicia-se a transformação.

É criado o casulo com nossas irrealidades. Ficamos presos no meio disso tudo tentando quebrar o que nos prende e sem compreender nem como, nem de que forma. Outras diversas ilusões são criadas, para sermos capazes de ver o que nos seduz. Começamos a olhar para dentro e a descartar. Analisar, ver, compreender. Tudo vai caindo e montando o caminho. Olhamos para cada parte e essas vão entrando em órbita do centro. E vão mostrando seus lados diversos. Vamos percebendo cada lado de cada coisa em um movimento circular que leva ao seu centro. Entrando na espiral da compreensão de tudo que nos pertence. Esse movimento em espiral se espalha pelo restante dos elementos. Os elementos todos vão espiralando rumo ao ponto central. Deixam de serem elementos, se unem ao todo que somos.

Não existe diferença. Quando mais se está no centro, menos se está no centro. Aquilo que fomos capazes de perder a vida para conquistar, em nome da auto-afirmação e auto-importância, deixa de ser uma meta suprema. Se é algo nosso, torna-se natural conseguir. E quando conseguimos, é parte nossa, é algo natural e não há necessidade de ser mostrado. O que é nosso, ninguém pode tirar. O que não é nosso, nos causa dor, fere, nos faz perder tempo. Desperdiçar tempo é uma doença, pois temos dele muito pouco. Fazer sentido é economizar nossos dias, pois sabemos o que vamos fazer. A foice do tempo carrega o que não somos. Enquanto carregarmos o que não somos, iremos morrer continuamente, em busca da transformação. O casulo vai tirar nosso ar. Vai nos matar lentamente, enquanto morremos indefinidas vezes. Quem não se transforma, atrai a morte. Quem não morre para se transformar, carrega o fardo de carregar o mundo pelas costas.

Mais que isso, o Despertar. Acordar no despertar.

Despertar do pensar. Sair do ciclo enganoso de que estamos pensando e não apenas sendo levados em infinitos devaneios. Refletir, escapar dos jogos mentais que criamos para ficarmos presos dentro de nós, olhando para fora, sem ver nada em local algum. O ego toma a mente. As vozes das feridas nos atacam. Os predadores se levantam. O Self sabota o sistema. Tudo se torna instável. E mesmo assim, as pessoas continuam vivendo fazendo de conta que tudo está normal. O medo é uma constante. A insegurança. O negar-se.



O Centro.

Estar no centro é quando a espiral nos torna. E vemos outra espiral de tudo que circula a partir do Self. A espiral que nos contata com o Cosmo. Espirais que levam a espirais. A liberdade de ter retirado o peso das máscaras que nos consumia. O que sabíamos começa a se reorganizar. A espiral da memória nos refazendo pelas pistas que o Self havia deixado pelo caminho. Lembramos o que sabíamos e agora existe um real sentido. O Tempo levou nossas lembranças. Nos castrou de quem achávamos que éramos. Agora estamos lembrando. Das profundezas de quem somos, nasce um novo ser. Toda nossa vida havia se tornado cinzas. Havíamos caminhado pela loucura, procurando a insanidade de nossa essência, em um existir que invariavelmente se torna uma catábase. Quando apesar de qualquer sucesso aparente que ousássemos achar ter, era correr para o desastre. Tudo cái e encontramos a loucura que sustentamos. Essa demência que faz tudo girar e entramos no centro, onde o Self está ali pronto para destruir tudo em seu giro.

Ver-se é não conseguir mais sustentar o Mundo. Esse desfalece, quando do centro emana o que somos. Todas as projeções vão caindo, uma a uma. E sabemos finalmente que o mundo não é aquilo que sempre pensamos que fosse. A mentira aparece. Tudo desvanece. As pessoas começam a ser quem são. O que víamos de bom nelas é o que gostaríamos de ser. O que vemos de ruim é o que descartamos em nós. Não são o que achávamos que eram. São o que infelizmente são. Essa é a realidade. Não existe nem bom nem ruim. Existe o que é.

Não existe diferença. É a realidade. Nada mais. Nada menos.

Desaparece a dor que criamos.

Desaparecem nossas criações. O sistema ao qual estávamos ligados vai desfazendo suas conexões. Não pode mais nos tocar. Existem lampejos de insegurança, quando até certo modo tememos o que vem adiante. Quando vemos as direções das espirais as quais estamos nos conectando. O mundo se revolta contra nós no inicio. Depois vai fazendo questão de nos esquecer. Mas aqui ainda estamos. E aqui ainda vivemos.

Tudo vai desaparecendo. Os mecanismos de controle que nos prender passam a ser percebidos. Não existe mais inconsciência perante o mundo. Ainda temos de lidar com tudo, mas sabendo o que está acontecendo e tendo a possibilidade de ter controle sobre o que queremos. Não nos guiamos mais pelas ilusões. Não imaginamos mais o que queremos ser. Não mentimos mais para nós mesmos. Quebramos causas e efeitos, deixando de ser apenas reativos. Temos as rédeas em nossas mãos e, seguindo corretamente, podemos adentrar pelas espirais.

O despertar daquilo que achávamos ser o nosso caminho. Os despertares anteriores. As percepções anteriores. O acumulo de conhecimentos e vivencias inúteis que nos deixavam presos em nossos labirintos. Desmantelamos nossas seduções. Não precisamos mais de nos cercarmos do infinito, ou procurar a totalidade, ou seguir a espiritualidade do mundo. Os paradigmas, os quânticos, os metafísicos, os intelectualismos, os gurus, os nagualismos e todos os achismos. O que é seu é seu, não é dos sábios. Não existe fórmula de massa. Não existem paradigmas. Não existe olhar para o mundo. O mundo é irreal. Nós no mundo somos tão irreais quanto a todos. Tudo é irreal, quando não estamos no centro. Podemos saber todas as tendências espirituais, todos os movimentos, conhecer a tudo. Mas se não deixarmos o mecanismo do mundo para entrar no ricochetear das espirais, estamos presos a conceitos. Conceitos limitam.




Não creiam que estou escrevendo algo baseado em coisas que li ou estudei. Estou escrevendo para deixar tudo de lado. Meus estudos durante todos esses infindáveis e tão breves anos me levaram a conclusões. Essas conclusões todas foram para quebrar tudo que estudava. Estar além de símbolos e teorias. De práticas e modelos. O que aprendi é que nada vale sem se estar em contato consigo mesmo. Torna-se um bibliotecário de livros que serão queimados. O doutor do erro. Aquele que carrega toneladas de conhecimentos arraigados que nos afundam no mar da confusão.

Transforma-se é deixar-se. O desapego não se constitui em vender tudo que se tem para dar ao que antes mais necessitavam. Desapegar-se é deixar de lado a própria falácia de que se tem o desapego. Fazer questão de esquecer. Saber lembrar. Misturar o resultado disso com o fluxo do Self. Penetrar totalmente em si. Lançar-se ao vazio sem a intenção de retornar. E por causa disso, renascer e voltar como aquele que não foi.

O Self deixa de ser o Outro. Aquele que estava no fundo de nossas imagens nos assombrando. Aquele que em alguma foto nos fez ter medo de nossa face. Aquele que aparece no espelho quando estamos no escuro. Que se veste de sombras e mostra o nosso pior. É o Self quem cria o predador fatal. Que ri de nossas inconseqüências. Que nos despedaça para sermos sacrificados. Que usa a máscara sagrada ritual.

Deixamos de lado a máscara das cascas e usamos outra máscara, aquela que coloca em contato com o Divino. Aquela que é ouvida pelos deuses em nossa dança da alucinação. O ser putrefeito que fomos não pode consegue acessar corretamente a Divindade. Não sabe o que considerar. Não é real. Não sabe o que encontrar. Não sabe o que acessar. Simplesmente, não sabe.

Aquele que encara as suas cascas e vai em direção a escuridão interior é aquele que demonstra seu valor. Igrejas aceitam a todos. Prometem a tudo. Dizem que basta nos arrependermos pelos nossos erros.

Não existe diferença: Quem errou sabendo o que fazia?

Cascas não são capazes de pensar. Não podem tocar. Não podem sentir. Cascas são mesquinhas. Se vendem por pouco. Crêem sem compreendem. Vivem estando mortas.

Nada além, apenas dormência.

Espirais além de espirais. Sair dos círculos do labirinto. Voar rumo ao infinito. Andando entre Si Mesmo. Tocar o próprio rosto. Tocar a si mesmo. Ver-se no espelho. Saber quem se é.

Não existe maior prêmio até aqui. E é só o início.

Espirais são infinitos fractais e geram outras espirais, que geram espirais, que geram espirais...

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Predadores





Existem momentos nas alucinações em que a imaginação se mescla com aquilo pelo qual vamos passar. Nesse sentido, a Princesa nunca me enganou. Lembranças vão, lembranças vêm. Desaparecem, voltam, nos deixam órfãos, se tornam atavismos. Tudo que vimos está dentro de nós em algum local pronto a ser acessado um dia. Lembranças de elementos que sabíamos e que hoje colam-se, montam-se e geram percepções a serem estudadas, compreendidas e que nos levarão a locais novos. Seqüências de um filamento que nos guiam a um despertar e que podem ser novamente esquecidas, esperando serem novamente ativadas e entrarem na composição de novas vias internas. Estamos sempre sendo construídos. De percepção em percepção. De despertar em despertar. Numa dança cósmica infinda e inadiável. Transladando entre caminhos, tornando-nos novos a cada ciclo de transmutação.

Encarar-se é inadiável. Ou estamos indo rumo a encarar o inimigo. Lutamos sempre contra ele, que se esconde na escuridão, no ponto cego de nossa visão interior. Nunca se manifesta de forma a ser visto. Sempre nos controlando e dominando. Entrando em nossa mente e pensando por nós. Levando-nos ao erro, a não ser percebido. Um predador mesclado com nossos instintos. Sempre na espreita para nos derrubar. Não temos armas contra quem está misturado com nossos medos e nossas incompreensões sobre quem somos. Não há como enfrentar que quer sempre nos sabotar, sem saber quem é, onde está, como age.

Entramos nas piores situações sem perceber. Sempre nos sabotando, impedidos de ter o que mais desejamos. Somos todos auto-destrutivos. Alguns mais, outros menos. No fundo de nós vive esse predador invisível, que manipula tudo que temos contra nós. Tudo que pensamos ter. Tudo que imaginamos ter. O predador que nos leva a nossos perigos mais insanos. Que nos faz degenerar, errar no momento exato, perder o que temos. Quanto mais procuramos consciência, mais o predador se espreita nos desencaminhando. Quanto mais nos voltamos para o mundo e uma vida de futilidades, mais o predador nos faz entrar em choque com o que procuramos, mais nos faz depender do ilusório, acreditar em fantasias, procurar se esquecer do sonho que nos fez estar aqui.

Certa vez, na dimensão da alucinação, procurando por mim mesmo, desafiei a tudo que me cercava. O Príncipe perguntou se era capaz de lutar. E desafiei dizendo que não podia ser vencido. O Príncipe me retrucou para um duelo e perguntou novamente se achava que podia vencer a tudo. Respondi com agressividade dizendo que era insuperável.

O Príncipe elevou o tom, em uma voz de controle, perguntando se tinha certeza do que estava falando. Ao mesmo tempo, toda a minha agressividade se plasmou e coagulou em palavras ásperas perante o Príncipe, dizendo que não podia ser vencido.

Com sadismo o Príncipe veio para lutar. Mas não era ele. Era eu com quem devia lutar. Eu perante eu para um duelo. Minha imagem quase fisicamente plasmada partindo para me destroçar.

Rapidamente comecei a mudar de força para espancar meu duplo. E esse me imitou prontamente, fazendo exatamente o mesmo. Os golpes que desferia recebia em simetria. Carregava mais armas e me tornava cada vez mais assustador. E o duplo também fazia exatamente o mesmo, no mesmo instante, lendo todas as minhas reações. Nem ele, nem eu, nos feríamos, pois nossas armaduras eram cada vez mais sofisticadas.

Em um acesso de alucinação, comecei a golpear e a ser golpeado em igualdade, de forma extremamente violenta. Os choques balançavam as realidades que criei. Pensei que seria derrotado por esse ser, ao mesmo tempo em que pensava em vencê-lo antes. O mais rápido que pudesse, antes que perdesse o fôlego. Era impossível, o duplo tinha as mesmas habilidades que eu, na dimensão do Príncipe e da Princesa.


Aumentei a violência a um nível de insanidade. Não sabia quem mais era. Não percebia que diferença tinha de meu duplo. Éramos ambos, um golpeando o outro sem piedade. Mas éramos o mesmo, sem diferença. Fui além da consciência, em algum local instintivo de violência e agressividade total. Até que me vi golpeando um espelho. Agredi totalmente o objeto sem piedade e esse se quebrou.

Não havia nada em nenhum dos lados. Um vazio imenso e perturbador.

Até onde somos nossos inimigos? Até quando lutamos conosco para nos mantermos exatamente em local algum? Qual o motivo temos por lutar para nos sentirmos reais?

Entramos em nosso labirinto que vamos moldando por ilusões, crenças, imaginação, desejos e todos os mais inexistentes tecidos. Não somos nada disso. Não somos nada. Nada além de nada. Nada disso existe. É irreal, é uma imitação estúpida de algo que vive em nós. É uma negação do que somos. Vamos nos encarcerando e nos perdendo. E dando força a nossos predadores que criamos para nos destroçar, ou acordar. Somos o nosso pior inimigo.

Certa vez pedi ao Príncipe que mostrasse meu predador. E esse disse que não podia mostrar algo que eu mesmo sou. Não há como montar uma imagem minha de algo que sou totalmente. Bastava olhar no espelho e saber quem me sabota.

Esse é o custo das máscaras.

Mesmo nos reinos da alucinação nos enganamos e não conseguimos transcender. Não conseguimos nos livrar de nosso lastro, de nossas âncoras, sempre dando de cara com as grades. Onde não podemos transpassar.

As grades de nossa limitação.

Fortaleza da Imaginação







É muito fácil nos iludirmos com a nossa imaginação. Por mais perfeita que seja, por mais que tenhamos visto algo próximo, ainda é imaginação. Sonhar com algo não é conquistar. Imaginar não é viver. A imaginação nos aproxima de um contato, com o devido desenvolvimento próprio, pode nos levar a anteciparmos algo o que iremos passar. Mas nada substitui a experiência.

É claro que poucos têm possibilidades com o imaginário, que é uma das portas de entrada para o universo além do físico e não propriamente metafísico, o mundo não visível pelos nossos olhos materiais. A busca pelo imaginário já é uma forma de descolarmos dos véus da ilusão. Mitos, lendas, histórias, contos, folclore. Ali estão descritos seres e acontecimentos que nos deslocam do mundo aparente e abrem o caminho para algo maior. Quanto mais conhecemos, do mundo imaginário, mais podemos nos sincronizar como Tempo da dimensão onde encontramos o invisível.

A dimensão do imaginário em principio nos tira das amarras da realidade ilusória. Podemos mesclar o invisível com conceitos, criar simbolismos, perceber-nos através dos espelhos da imaginação. Olhamos para mitos e vemos sentidos “psicológicos”. Estudamos deuses e procuramos encontrar seus significados e o que representariam. Estudando mais, vamos nos intrincando em um universo próprio, mesclado com a tentativa de compreensão de todos os seres humanos. Esses olham para as fábulas e procuram sentidos e explicações para se entenderem. Tentam se aproximar da auto-compreensão, redefinindo as percepções do sagrado de povos antigos, ou tidos como “primitivos”. Observam a religião alheia e a mesclam com todos os tipos de simbologias e psicologismos. Descaracterizam o sentido de sagrado de diversas culturas, procurando os sentidos dos seres humanos.

O estudo da mitologia é algo extenso, uma tentativa de sistematização do funcionamento da psique, tendo em vista as suas expressões no ponto de vista mítico. A comparação de divindades tem o sentido de perceber elementos da alma através de suas crenças e da criação de divindades. Com nascem crenças, que tipo de função gerou determinado rito. Como as crenças da humanidade evoluíram até os momentos atuais. Quais os componentes das religiões atuais decorreram do culto de antigas divindades primitivas.

O estudo do fenômeno espiritual, em todas suas escalas, daria respostas do funcionamento de determinadas áreas do cérebro. A compreensão do ser humano e sua composição íntima, manifestada por todas suas áreas de expressão. As crenças moldando o aparecimento e desenvolvimento da civilização. Relações entre culturas antigas e atuais e a forma como o imaginário se compõe. Desse ponto de vista, é fácil penetrar nos elementos próprios, acessando os mitos diretamente e procurando a forma como reagimos miticamente. Nossos mitos pessoais que se relacionam com determinado mitologema e em como podemos desenvolver todo o nosso potencial. Como ir além dos mitos que criamos para nós? Como modificá-los, com o intuito de nos percebermos, curarmos, penetramos de forma eficaz no inconsciente e tratar mais facilmente da psique?

Resignificamos mitos e observamos melhor os deuses e heróis perante uma visão de determinada escola de psicologia. Utilizamos os resultados para perceber melhor o funcionamento de nossos complexos, perceber arquétipos, ou qualquer outra estrutura do inconsciente. É um belo estudo, que vai absorvendo vastos campos de conhecimento, sendo entrelaçados de forma criativa. Perceber os conteúdos psicológicos de deuses esquecidos e aplicar significativamente na cura e desenvolvimento da totalidade.

Toda essa escalada seria belíssima, se por um acaso não tivesse deixado de lado um determinado elemento. Um esquecimento básico, algo que a racionalidade tão cultuada e propagada atualmente fez questão de tornar um paradigma.

A viagem intelectual e erudita humana esqueceu-se de algo básico:

Deuses existem.

Deuses não são símbolos. Existem além de nossa compreensão. De nossa necessidade de esquecê-los. De deixá-los de lado.

Quando um deus é esquecido, não deixa de existir.

Talvez, apareça um questionamento básico em nossas dúvidas a respeito do invisível:

Se uma divindade não é mais lembrada pela humanidade, pode ser que essa exista por motivos os quais não sejamos capazes de compreender.

É hora de despertar perante as visões que temos. O imaginário é apenas a porta de entrada. Além dele, existe muito mais. Além de nossas crenças, de nossas teorias, teses, estudos, erudição, intelectualidade, conhecimento que supomos ter sobre nós, os outros e o coletivo.


O imaginário pode criar uma fortaleza. E essa nos jogar em nossa solidão. Um mundo particular que acreditamos existir, fundamentado em nossos anos de estudos e conhecimentos acumulados. Coisas reais mescladas com nossas conclusões. Conclusões nossas geradas pela visão que temos. Pela forma que somos acostumados a olhar. A forma como somos condicionados a perceber. Percepções geradas pelos métodos que o coletivo nos ensina, educa e diploma.

Vá até a montanha e descubra se o que chamam de montanha é exatamente o que disseram. Podemos ler um tratado sobre montanhas. Estudos acadêmicos avançados sobre elementos ligados a montanhas que seriamos incapazes de compreender totalmente. Somos forçados e ler diversos materiais, conhecer especialistas, freqüentar aulas e seminários a respeito de montanhas. Entretanto, ao chegarmos a uma montanha, podemos descobrir que essa não tinha similaridade alguma com o que diziam sobre ela.

Existem diferenças entre estudar um culto de um povo longínquo através de livros e palestras e conhecermos seus praticantes pessoalmente. Existem diferenças entre conhecer seus praticantes pessoalmente e ver o que cultuam. Existem diferenças entre ver o que cultuam e passar vida inteira, como um deles, sendo parte de tudo aquilo.

Mesmo entre aqueles que dizem cultuar divindades, que fazem suas oferendas, rituais, libações e elevações, poucos são os que escapam dos grilhões do imaginário. Quando sequer vão além e simplesmente o acessam.

Uma evocação não é sinal de contato. Nem tão pouco garantia. Nem o que julgamos sentir, ver, perceber. Não podemos acessar o divino sem vencermos os grilhões que nos prendem nas incompreensões errôneas de quem somos.



O mundo não é o que imaginamos. Nem tão pouco as pessoas que conhecemos. Volta e meia criamos coisas pela incapacidade que temos de nos aprofundar. Criamos, imaginamos, julgamos perceber. Fundamentamos nossa imaginação em justificativas sobre o que queremos de nós, sobre o que queremos dos outros, sobre o que queremos acerca de tudo. Apenas querer não basta. As coisas são o que são da forma que são.

Imaginamos o divino de forma que esse nos auxilie. Imaginamos ter contato com deuses, com anjos, com demônios, com tudo que é possível. Imaginamos que eles influenciam nossas vidas. Que recebemos coisas deles. Que somos especiais para eles. Que não exigem nada em troca. Que basta ser como somos e teremos a sua misericórdia e auxilio. Imaginamos sermos seus sacerdotes. Imaginamos que fomos iniciados em seus mistérios. Que passamos por rituais e práticas que nos colocaram em seu caminho. Que receberam nossas oferendas, que nos ouviram. Que serão a nossa vingança. Que aceitam nossos caprichos. Que temos razão perante todos e que somos sempre auxiliados por isso. Nossas crenças imaginárias são nossas justificativas. São acúmulos de informações inúteis e incompreensões baseadas, como sempre, no ego. Por isso nos irrita tanto quando alguém não acredita em nossa fé. Quando questionam nosso contato. Quando cobram nossos resultados. Quando colocam o dedo na nossa ferida. Quando, por um instante, imaginamos que podemos estar errados. Quando imaginamos que nossas experiências foram falhas. Que não sabemos, apenas imaginamos. Que não vivemos nada, apenas nos enganamos. De uma via inicial, para a via enganosa. O pântano das ilusões que criamos. Não conseguimos transcender os mitos e acessar suas fontes. Não conseguimos compreender suas lacunas, suas incongruências, suas contradições. Assim, caímos no jogo de criar mitos que refletem apenas nossas cascas. Que refletem nossas lacunas, nossas incongruências e nossas fatídicas contradições. Criamos, cremos, nos explicamos. Aumentamos os mecanismos de distorção de quem pensamos ser, em nome do controle. Em estarmos distantes de quem somos e entregues aos descaminhos.

O mundo das cascas é um mundo profano.

Romper as cascas é entrar no Ovo Cósmico do Si Mesmo.

Abraxas




Quando tento lembrar qual foi a primeira vez que tomei contato com Abraxas, vou voltando no Tempo, para quando a minha jornada ainda era um inicio de caminho. A passagem dos anos confirmou-se como sendo um relacionamento longínquo, algo difuso enquanto próximo. Os estudos foram se acirrando e a proximidade tornou-se um fascínio, ao mesmo tempo em que um canal para coisas minhas sempre intactas em meu interior. Procurar conhecê-lo melhor é algo como entrar na vastidão interna, em um local onde as imagens se plasmam com a percepção de algo numinoso e irrequieto.

Abraxas é absolutamente terrível. Assim foi percebido, elogiado, conclamado e contatado. Nele vive a dualidade, não apenas uma syzygya filosófica, ou simplesmente um raciocínio circular procurando o alquímico. Por ele duas camadas de percepção de quem somos vem nos abraçar de forma a transcendermos jogos de conceitos, imposições coletivas, discursos sem sentido e carregados de doutrinas. Tudo que nos expressa tem sempre duas faces, tudo é um hibrido que escancara nossas falácias, fazendo-nos deparar com a inconsistência daquilo que não é nosso.

Estamos além disso. Algo como estabelecer conexões com nossos planos interiores. Nossas percepções sempre distorcidas pelo que não nos pertence. Vamos além de nossas possibilidades e de nossos erros íntimos. Aqueles erros que carregamos, sem nunca dizer a ninguém. Erros vindos da incompreensão de nossa natureza perante um mundo que é totalmente distanciado do que seja algo natural. Erros advindos das distorções das compreensões que nunca fizemos a menor questão de dissolver. Coisas que carregamos no íntimo, que vão nos deixando turvos e perdidos na enorme estrada que parece não ter fim. O caminho parece ser interminável. Parecemos estar perdidos eternamente. Não compreendemos para onde vamos. Nem compreendemos o motivo da estrada. Nem tão pouco procuramos saber qual o motivo de estamos na jornada. Julgamo-nos sempre os heróis de nossa ronda e estamos sempre estendendo a mão para o primeiro salvador que queira se deixar-nos em sua estrada. Perceber-se é nosso, não externo.

Dormimos e sonhamos com nossas ilusões, julgando ter controle sobre nossas parcas vidas. Nada de patente, apenas um dia após o outro, presos a rotina e temendo a passagem cada vez mais veloz do Tempo. Somos consumidos pelas nossas insatisfações e nunca conseguimos vencê-las, percebê-las exatamente, nem tão pouco saciá-las. Não conseguimos nunca saciar a tudo que nos dá sede. Consumimos todas nossas energias perdidos entre as dunas das areias da ampulheta que demonstra o quanto foi perdido. Olhamos sob a escuridão escaldante do vazio de nosso interior, nos seduzindo por miragens. Não há como penetrar nas rochas das paredes do labirinto, que cada vez é mais confuso. Construímos nossas crenças, nosso andar impreciso, procurando as pegadas daqueles que parecem saber onde estão. Andamos dentro do labirinto, encontrando sempre as mesmas pegadas. Que parecem ir para frente, para trás, sem saber onde vão parar. Porem, com um olhar mais atento que nunca temos, percebemos que aqueles que andam o nosso labirinto estão tão perdidos como nós. E o pior, criamos o labirinto e os colocamos dentro. Se tivéssemos essa visão, pelo menos conseguindo interpretar nossos sonhos, naquele momento entre o sono e a vigília, teríamos o desalento eterno.

Quem acorda por um momento sequer, percebe-se como um ovo, onde o embrião anda pelas ruas desertas de sua inconsciência. Um embrião querendo sempre germinar em seu intimo. Um embrião apenas fascinado com as paredes de seu labirinto, de sua casca insana, o germe de sua rotina que consome seus anos, leva a juventude, a maturidade e a velhice. E desaparece perante o grande mistério do desespero inadiável.

Olhar dentro de si, em algum local entre a noite e o dia. Entre o que não vemos e o que devamos encontrar. Algo germina, começa a mostrar sua face assombrosa. Carregado das fileiras do Tempo. Seu número como os dias de um ciclo solar. Sua expressão como aquela que derruba todas as caricaturas dementes que criamos para todos nos adularem. Não existe mais volta, nem salvação. A salvação que nos devora na esperança de uma vida além da Morte. Essa salvação não podemos mais tocar, nem esperar pelo fim dos dias, sendo apenas aqueles que respeitam regras que são impostas pelas gerações das gerações teriam a condenação eterna.

O som do chicotear vai nos levando a degeneração. Não nos enxergamos mais como éramos e não temos mais para onde voltar. A dor de algo que existia em algum vazio interior vai nos tirando a respiração. Não conseguimos mais segurar nas paredes do labirinto, ali não há mais apoio algum. Olhamos para os lados e não reconhecemos mais o mundo. É um local de desespero, a prisão dos seres imprecisos, os que negam a tudo e a si mesmos. Os que não se olham, mas deturpam e se prendem no próprio desregrar.

Algo no interior vai se transformando e circulando, criando formas imprecisas que tomam partes nossas, que geram outras, que redefinem. Tempestades interiores. Locais perdidos por toda parte. Locais que nos chamam a serem visitados, criados, recriados. Locais que sempre foram como são. Que nunca vimos antes e que ao percorrê-los nos mostram imagens nossas, onde nos misturamos com elas e nos tornamos. Despertamos de nosso sonho. Sonho tacanho, triste e ordinário.

Acordamos, olhamos para os lados, percebemos tudo e a todos. Vemos nossa imagem nos espelhos. Começamos a andar novamente, percebendo castelos de ilusões. Mundos inteiros perdidos nas névoas e nas nossas partes intimas. Percebemos tantas e tantas coisas. Compreendemos a tudo. Abrimos os horizontes e vamos andando e apreciando o Sol sobre a nossa cabeça. Ele rege nossos caminhos, nossas vidas, nossos mundos. Todos os que começamos a conhecer novamente. Andamos sob essa luz que começa a trazer um calor extasiante.

Dançamos sob seu vinho delicioso. O caminhar entre os homens e a possibilidade de ajudá-los. A voz interior, a entrega ao mundo, o auxiliar. Os passos se intensificam. Andamos mais rapidamente, vamos sentido um calor incomodo, o olhar pelas paredes que nos cercam. Paredes? Novamente paredes? Estávamos no labirinto? Não havia caído? A luz selvagem do alvorecer cega nossos olhos e ouvimos o carro com o chicotear terrível se aproximando novamente. É o despertar. O despertar do despertar.

O despertar que havia nos jogado nas ilusões. As ilusões mais elaboradas que criamos por pensar que estávamos livres. Que sabíamos alguma coisa. Que estávamos prontos. E assim vamos despertando e despertando e despertando e seguindo de forma infinda por uma jornada rumo a quebrar o ovo. Aquele que se despedaça de dentro para fora e seus cacos são nossa doença espalhada pelo mundo. O mundo a devora e rumina, dando alimento a seus filhos presos naquilo que os enche de desejos: O controle.

Perdemos o controle. Acordamos e acordamos e acordamos. Não há mais controle sobre nós. Nem amarra nenhuma.

O despertar é uma errupção.

E Abraxas corre pelos Céus: Agora podemos ver as estrelas.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Tome-se

A hora do despertar


Tome o lugar de Si Mesmo, aquele seu local no seu íntimo, que sempre lhe pertenceu. Aquele que ninguém deve tomar. Aquele mesmo que nunca devia ter deixado. Seja aquele que renasce a cada instante, a cada novo dia, a cada novo olhar no espelho. Aquele que reconhece quem é. Aquele que ninguém pode controlar. Aquele que é senhor de cada parte de si. Que não pode ser domado, controlado, nem dominado. Apenas quem é, mas nunca deixaram ser. Aquele que é, mas nunca teve coragem de procurar. Aquele que está aí dentro lendo essas palavras, mas nunca deixou a voz ecoar. Aquele que é a reverberação de quem sempre soube que é.

É com esse ser real que falo. Esse ser que pode me ouvir. Não essa casca perdida, voando com os ventos indecisos. Que não tem segurança, que não sabe o que fazer. É aquele que detém todo o contato com a sabedoria divina que estou procurado.

É para esse, que conhece o bem com o mal e o mal com o bem. Que possui em si todas as naturezas, todas as percepções, tudo que é e o que pode e deve ser. Que quebre a casca e descubra o mundo. Abra as asas da própria grandeza, olhe ao longe, veja a tudo. Veja o mundo como é. Esteja além do que impuseram para que fosse. Vá além disso tudo. Vá além das possibilidades desse mundo de fantasia. Devore a si mesmo dentro de suas ilusões e desperte, definitivamente e indo além do que possa sequer imaginar. Pise na imaginação que pensou ter de si. Descubra-se no meio do que deixou de lado. Quebre suas amarras interiores.

Olhe para a montanha. Vá descobrir se o que pensa que é uma montanha é o que sabe sobre ela. Aproxime-se, suba até o seu topo. Observe a tudo. Descubra o que é realmente uma montanha. Nem tudo o que disseram é verdade. Nem tudo que observou é real. Nem tudo que achou era algo. Vá além, muito além do que pensa.

O que pensa das pessoas é falso. O que sabe de si é uma mentira. O que achou ser, uma fantasia. Sua máscara é uma prisão. Suas ilusões sua sentença. Vá além, pise sobre tudo isso e quebre a casca que o aprisiona.

Destrua o castelo que criou para se proteger do mundo. Vá além do mundo, pois esse não pode tocar sua essência. Essa está muito além. É quem inspira, ensina, mostra a mentira, mostra a verdade, a diferença, a repetição, a dança, a loucura de ser livre e poder demolir seus gládios, suas correntes, arrebentar suas relações com toda a teia de relacionamentos. Tudo que o prende. Todos seus contratos, suas necessidades de ser percebido, reconhecido, visto, agradado, mimado, envaidecido, elogiado. Nada disso é preciso, apenas retoques, moedas para dominar, pisar, fazer se esquecer.

Lembre-se.

Lembre-se de quando não era. Que não precisava de nada disso. Quando era quem queria ser. Quando não havia sido educado, treinado, domesticado. Quando isso tudo lá fora não controlava. Quando a felicidade era sua. Quando ninguém jogava com ela. Quando ninguém era capaz de tocar, arranhar, machucar. Como tudo era simples e fazia o que queria. Como uma criança sem se preocupar com qualquer responsabilidade, ou algum vinculo, regra, etiqueta, moral obtusa.

Nada, sua casca é nada. Não existe. Não tem controle. Não pode me dominar. Não pode dominar a nada. Apenas continuar vivendo, com medo, com insegurança, sem conseguir a nada compreender. Que a casca se quebre, que o mundo seja negado, que o rei retome seu lugar, em seu trono eterno. A espada não está mais quebrada.

O senhor de Si Mesmo retornou.

O Rei está além desse reino de servos.