terça-feira, 19 de agosto de 2008

Manter-se



Saber-se é como olhar pela janela e saber cada detalhe. A janela que dá vistas para a própria alma. Alma que vai além de lamentos. Alma que uma vez vista é a eterna recordação de quem se é. Olhar a si mesmo, ver-se sem cascas. Perceber-se e despertar a cada instante.

Observar-se, perceber o próprio fenômeno, com o olhar correto, com a percepção além das distorções das máscaras que não são quem somos. Nesse local, a via de acesso para aquilo que é através de si, vê-se a forma como se deve seguir.

Procurar o procedimento correto, a linha reta por si e para tudo. Saber todas as condutas, caminhar com solidez, passo a passo, sendo quem se é acima de tudo. Caminhar com os pés de quem se é, estar pisando por si mesmo e ninguém mais. Ter em mente o caminho, o traçado de onde se quer chegar. Traçar sempre os próprios objetivos que nos levam além do que possamos simplesmente ser, sendo quem somos sem nos esquecer, daquilo que nos torna.

Ser quem se é, nada mais, nada menos. Ouvir a pulsação de cada instante do que traçamos e manter-se firme e reto. Tudo o que queremos é o que somos. O que somos nos mantém unidos dentro de nós. Estamos além do olhar que nos colocam. Estamos dentro do que sempre quisemos e nunca conseguimos antes expressar.

Fiéis com o que somos, com quem somos e muito além. Impecáveis com cada movimento. Impecáveis em cada parte nossa. Nosso procedimento é nossa conduta. O respeito para com tudo é como o respeito para com nossos objetivos. Nosso sarcasmo a tudo denuncia. E nos centra dentro daquilo que temos a certeza. Cada detalhe cuidado. Cada pedaço de nossa vida em nossas mãos. Saber o que se fazer. Tocar nossos horizontes, tocando além dos limites.

A solidez se torna quem somos. Somos o olhar fixo da janela, olhamos a tudo que existe de forma correta. Não projetamos mais. Não esperamos nada de ninguém. Tudo segue seu fluxo. Esquecemos-nos do que não é. O que foi e nunca teve importância. Estamos além de nos machucar, não estamos mais submetidos ao que achamos que somos. Não mantemos mais aparências. Estamos além do que pensamos que poderíamos ser. Compreendemos nossos passos. Nossos passos são nossos objetivos. Aqui estamos observando os obstáculos que irão nos levar além.

Os sentidos são formados. E os sentidos vão se desvanecendo e tomando um contorno muito além do esperado. Não existe nada a esperar. Os sentidos explicam, dão respostas e deixam de ter sentidos. Tudo se transmuta e gira na eterna espiral que nos leva ao centro da eternidade.

Mantendo-se. Tornando-se. Deixando-se. Compreendendo-se. Desfazendo-se. Vivendo-se. Tornando-se.

Mantendo-se. Tornando-se. Deixando-se. Compreendendo-se. Desfazendo-se. Vivendo-se. Tornando-se.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

E se...


E se me pintasse com a mais fina maquiagem, unido as formas de meu rosto como a de um palhaço? E se fizesse isso para parecer humano? E se trocasse de pintura diante de cada olhar faminto? E se, com minha máscara, mostrasse a sua máscara? Pois olhando para todos, cada um só vê a si.

E se eu soubesse o que esconde? E se a pintura em minha cara fosse a sua perdição? E se, cada traço que desenhei for estampar a sua incompreensão? E se, olhando para minha pintura, perdesse o olhar de tudo e ocorresse o estampar da sua loucura? E se, descobrisse que a sua ordem é aparente? E se, sendo eu um louco palhaço, o fosse só para que pudesse entender pouco mais do que nada, do que não olhou aí dentro?

Que loucura é essa que aparece do nada? É sinal de que me reconhece? Que teme o que vê e chora as lágrimas que nunca darão absolvição? E olhando para si, teme descobrir quem é? Que luta para ser normal nos limites da sua loucura? Que se torna demente tentando encobrir a sua diferença? Que aquilo que chamam de normalidade é uma jaula em um manicômio? Que a sua máscara é uma camisa de força?

E se, olhando para meus olhos alucinados, visse o que existe dentro de si? E se essa alucinação for sua? E se eu souber disso? E se brincar com seus brinquedos, que chama de vida? E se, zombar de seus valores? E se, rir daquilo que chama de responsabilidade? E se, por um mero acaso, ver que minha sátira é certeira?

E se, vendo sua imagem no espelho, ver apenas o palhaço louco? A alucinação de seus gestos, a distorção das imagens que julga verdadeiras? Meu rosto não é meu. Minha face não pode ser vista. O que olha em mim, sua mente não classifica e sua consciência rotula. Minha risada é do que não compreende. Olho a você e nada vejo, só uma caricatura tentando ser séria.

Irei gargalhar de seus trejeitos, que não são seus, apenas imitação. Rirei de suas prioridades, de suas necessidades, de sua mania de ser normal. Rirei de seus rótulos e mais ainda do que pensa a respeito de todos. De suas manias de grandeza, iguais a todos o que querem ser enormes.

Não aceitarei seus valores, nem suas moedas. Nada há para trocar comigo, pois não enxerga em mim o que não pode usar de meu. A pintura não é minha. A máscara não fui eu quem desenhou. A face é você próprio quem estampa.

O palhaço que tanto ri...

Onde está a graça?

Do que ele ri? De forma insana e interminável? Estridente e macabro? Seria, loucura?

Será você a me dizer o que é sanidade?

Qual o motivo de estar tão sério?

Rirei até seus ouvidos doerem. Onde está a piada?

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Mentiras


Permanecer em si sem olhar para fora. Tender ao centro é olhar para fora de si e ver-se conforme se é. Prender-se no que se acha que é, naquilo que aceitamos ser e que não corresponde ao que somos, é entregar-se a confusão de tudo que pensamos saber. Pensamos saber sobre nós, sobre os outros, sobre tudo que nos cerca, sobre cada coisa que podemos ver. Não temos a devida percepção e nos iludimos com o queremos ser, pensar, achar, crer, as experiências que tivemos, o que vivemos, o que compreendemos de tudo que se passou. E fomos todos enganados. Enganados por quem nos tornamos quando nos afastamos do centro. Acreditamos ser algo que não é real. Acreditamos tão fielmente, pensamos ter tanta certeza disso, que começamos a mentir e a ter certeza. Personagens dominam os atores, tomados pelo êxtase de negarem a si próprios e se misturarem com a máscara cênica. O amor pelo palco, pelos aplausos, por ser o centro das atenções e fundamentalmente, reconhecidos.

Vamos nos iludindo com as ovações e as vaias. Seguimos o roteiro legado. Assumimos os papéis, confundidos com eles, seduzidos pelas mercadorias existentes. Só conhecemos o que é comercial, o que pode ser vendido, enlatado, simplificado e monetarizado. O valor de tudo que temos deve ser expresso em termos financeiros e de pseudo-desenvolvimento pessoal. Quebrar a casca do mundo ilusório representa negar os desejos coletivos. Aquilo que é dado como tendo valor, ou belo, ou invejável. Escapar de tentar ter um papel reconhecido pelo coletivo. Nos fixamos nesses scripts e vivemos em sua órbita, sedentos por suas benesses, reconhecimento e suas projeções. Lutamos para sermos inseridos, não importando qual seja o custo e as distorções assim associadas.

Sustentamos coisas em nome do que nos programaram longamente para tentar ser. Mesmo não sendo. Mesmo não tendo relação alguma com ser isso ou aquilo. Sem ter noção do custo ou da frustração. Mantemos sempre as aparências, em nome de manter o que nos impõem. Sempre nos justificamos, criamos formas de provar a todos que somos parte. Justificativas nem sempre verdadeiras. Nem sempre reais. Nem sempre justas para conosco. Mentiras a respeito de quem somos. As criamos para acreditarem o que querem que sejamos. Para sermos pessoas enquadradas e respeitadas. Para continuarmos na nossa miopia, segurando papeis que não nos pertencem. Mentimos para o mundo. Mentimos para nós. Acreditamos em nossas mentiras. Nos tornamos a mentira. Transformamos em verdade.

O custo da mentira é a negação de qualquer forma de contato com o Centro. Descobrir-se diferente deve ser evitado a qualquer custo. E o custo é alto. É sustentar um peso inacreditável em nome do que pensam de nós. Em nome do que pensamos que somos. Do que lutamos veementemente para sermos, mesmo que nos faça mal, que seja doloroso, que seja um enorme sono que nos conduz a girar em torno do que nos seduz.

Criamos um mundo de fantasia. Cremos em capacidades que não temos, temos certeza de que um dia as coisas irão melhorar. Melhorar em que sentido? No sentido de que nossos planos, sempre coletivos e programados, sejam realizados. Em sermos mais plenos de algo que nos disseram ser plenitude. De termos a felicidade de ter algo que não é nosso. De nossas infantilidades perante o mundo que não nos deixa amadurecer. De crer em um mundo melhor baseado em nosso compromisso com todas nossas mentiras pessoais. Mentimos para o mundo. Todos também mentem. O mundo mente e respondemos com mentira.

O cheiro do que está escondido é como um enorme esgoto a céu aberto. Não há como esconder, a não ser pelas mentiras coletivas. Pelas crenças coletivas. Pelos comportamentos coletivos. Não há como negar-se para sempre. Mas há como coibir a manifestação de quem somos em nome de um bem maior. Em nome de nosso comprometimento com a família. Com a vizinhança. Com a moral. Com os bons costumes. Com a religião. Com nossos deveres.

Mentiras. Formas de esquecimento e desvanecimento em um limbo que desaparece com todas as nossas memórias. A autonegação deforma, degenera, tem um preço muito alto. Consome aos poucos, somatiza, nos confunde. Criamos visões de quem somos, coisas que achamos que sabemos sobre nós. Não percebemos nada a nosso respeito e vivemos em confusão constante. O doloroso não saber em nome do manter as mentiras. Negamos que somos em nome de mentir a respeito do que queremos ser. Nos apegamos as mentiras. Criamos justificativas enormes para sanar nossos erros, que podem ter sido acertos. A dor é escondida. As feridas não cicatrizam. Nos sabotamos constantemente em nome de algo que não é verdadeiro. Em nome do grande código de aceitação.

Somos conectados no sistema e doamos a ele tudo que temos.

Brincamos de sermos rebeldes, sendo diferentes da forma como todos o são, quando querem negar o controle. Formas de transgressão coletiva são formas de controle e de dissipar quaisquer mudanças. Cremos que somos, nos engajamos, damos tudo que temos para sermos. E sofremos tudo que podemos em nome de sermos ninguém.

Não há como ser nos deixando de lado. E, ao aceitarmos a conexão com o sistema, achamos ser melhores e superiores a todos os outros. Ou, inferiores aos que nos cercam. Distorções para nos manter. Distorções que aceitamos para mantermos. Todos dependentes, todos ligados.

Eu minto a você dizendo quem acho que sou. Você me seduz mentindo a mim sobre o que acha que sou. Alimenta minhas ilusões, faz crer que sou o que menti a todos. Suas mentiras se misturam com minhas ilusões. Cada vez mais me afundo em minhas fortalezas, protegido da realidade, do que está lá fora. Quando mais entro em mim, menos me vejo. Perco-me no fundo do que penso ser, do que me dizem que sou. Nego qualquer outra programação, errônea, o que é real. Creio no que imaginei, em meu mundinho pessoal. Vou me perdendo, criando e criando.

Alguns mentem para mim, dizendo que sou outro, aquele que pensam que sou. Ou me envaideço em minhas mentiras e nego. Ou aceito a mentira e a dominação alheia. Você mentiu para mim, disse que era o que pensava que eu seria. Eu minto para você, pensando ser o que digo. Como não sei quem sou, não mantenho meus compromissos com a mentira coletiva. Eu o decepciono, você me engana e me sinto traído, já que você também não sabe quem é. E assim as mentiras sobre as mentiras se criam. As justificativas pelos abandonos, pelas brigas, pelos desentendimentos. Mentiras para justificar as mentiras.

Mentem para nós, dizem coisas para nos agradar, para nos afundar em nossas mentiras. E vamos nos perdendo, perdendo, desaparecendo. Um casulo que nunca trará a transformação. Livres das tempestades, de tudo que nos possa ver. Cegos e à deriva.

O custo é sempre muito alto. Perdemos a individualidade mentindo ao coletivo que somos individuais.