sexta-feira, 16 de maio de 2008

Sophia


Existem diversas coisas que o cristianismo (mesmo o gnóstico) esconde, vela e re-vela. O mito de Sophia demonstra a complexidade dessa divindade. A plenitude pode significar algo desconcertante.

A Sabedoria é para os poucos que se projetam para a sua abrangência.

O mito de Sophia

No alto do inefável e transcendental mundo da luz, existia um par primal chamado Profundidade e Silêncio. Juntos, criaram um reino perfeito de equilíbrio e poder criativo, consistindo em trinta formas arquetípicas de consciência chamadas aeons. A mais jovem e aventureira delas, chamada Sophia (Sabedoria), apaixonou-se pelo próprio progenitor real, o grande rei invisível do Todo, chamado Profundidade, e desejousondar sua natureza peremente inescrutável. Confusa por seu amor, lançou o olhar em várias direções de seu posto eterno na plenitude, até que, a distância, vislumbrou uma luz magnífica, tremeluzindo com sublime graça. No espanto originado pelo seu amor, não podia mais distinguir entre o acima e o abaixo e, assim, supôs que a luz sedutora, que na verdade estava abaixo dela, não era senão a real efulgência do grande rei, seu pai, que residia no mais alto ponto dos céus. Desse modo, desceu ao vazio abissal, de onde, num mar de espelhos sem limite e inescrutável, o reflexo da luz celestial acenava para ela. Seu consorte celestial, Cristo, foi incapaz de refreá-la e assim, depois de um amplexo final e doloroso, ela mergulhou na profundeza das trevas, apenas para descobrir como a luz refletida a iludira. Triste e com medo, viu-se rodeada pelo vazio, destituída da qualidade e do poder da Gnose, à qual estava habituada na plenitude. Desejosa de Ter uma figura conhecida perto dela, criou na forma virginal um ser, cujo nome era Jesus. Embora concebido misteriosamente pelo seu desejo da Gnose original, Jesus se uniu, contudo, a uma sombra de escuridão, que se agarrou a ele pelas influências maléficas do vácuo sombrio onde nascera. Logo, Jesus se libertou de seus liames perturbadores e sombrios e subiu a plenitude, deixando Sophia em desalento.

Fora do universo celeste espiritual, sozinha e sem apoio, Sophia vivenciou toda sorte de tormentos psíquicos imagináveis. Paixão, pesar, medo, desespero e ignorância exsudaram seu ser como poderosas nuvens e se condensaram nos quatro elementos: terra, água, fogo e ar, assim como em seres que, mais tarde, ficaram conhecidos com o nome de Demiurgos e regentes (arcontes) – todos eles espíritos ferozes e turbulentos. O mais poderoso deles, um ser com face de leão, cheio de orgulho e desejo de poder, comandou sua hoste de espíritos criadores do mundo e, a partir da matéria-prima de terra, água, fogo e ar, eles construíram um mundo de aparência externa impressionante, embora repleto de grandes falhas, criado à imagem de seu criadores. Pesar, medo, ignorância e outras paixões dolorosas e destrutivas foram tecidos nas malhas desse mundo imperfeito, visto que a matéria-prima de seus fabricantes se originou nos sentimentos experimentados por Sophia. Olhando para baixo, para o mundo imperfeito e conturbado, orgulhosamente modelado pela sua própria prole ignorante, Sophia se encheu de piedade pela criação e resolveu assisti-la como pudesse. Ela tornou-se, então, o espírito do mundo, ansiosamente observando-o, como faz uma mãe quando vela por um filho fraco e malformado.


Enquanto isso, nas alturas, Jesus observava com ansiedade o triste destino de sua mãe Sophia. Ele juntou-se ao aeon-gêmeo de Sophia, Cristo, e assim se tornou Jesus Cristo, o Messias, e mensageiro de Deus. Em volta Dele estavam reunidos todos os sublimes ecompassivos poderes da plenitude, cada um ofertando-lhe presentes e glórias de seus respectivos tesouros. Assim, em Jesus Cristo, a plenitude e seus poderes se reuniram, preparando-o para o grande ato da redenção, a libertação de Sophia de sua lamentávelcondição no vácuo. Incessantemente, as súplicas de Sophia subiram como nuvens de incenso agridoces penetrando o recesso da plenitude, despertando a compaixão de todos os esplêndidos seres aeônicos que perpetuamente contemplam sua glória em seus reinos de perfeição. Através dos séculos e milênios da história da terra, Sophia orou e se lamentou sobre seu destino sobre o destino do mundo imperfeito, e raios de luz seemaranhavam nas redes dos regentes, que como monstruosas aranhas continuavam a tecer teias de matéria, emoção e pensamento como armadilhas para os seres humanos, - em essência, não criação deles, mas raios da própria natureza superior de Sophia, infundidos em corpos de argila.

Finalmente, os poderes da plenitude foram reunidos e, tendo entrado em Jesus Cristo, desceram à terra para libertar Sophia e por esse modo trazer redenção a seus filhos espirituais, os membros da raça humana. Depois de enfrentar as dificuldades impostas a Ele pelos regentes e por seus lacaios humanos iludidos, Jesus Cristo ascendeu triunfalmente da terra, levando Sophia pela mão. Alegremente, subiram às várias mansões do paraíso, batendo nos portais dos guardiões espirituais e conseguindo passagem para regiões mais altas e sutis da existência. Em cada portal, Sophia entoava canções de louvor e gratidão à luz que a salvara do caos de regiões inferiores.

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro


Quando Sophia, o Espírito do Mundo, chegou às margens que separavam os mundos inferiores da plenitude, olhou, mais uma vez, para baixo, para o mundo imperfeito e atormentado, suspenso o vácuo e no caos; seu coração partido mas agora refeito, se encheu de compaixão. Não, ela não poderia deixar completamente para trás aquela estranha criação, aos seus recursos mais que inadequados, nem poderia ela abandonar seus filhos verdadeiros, as mulheres e homens que estavam mais intimamente ligados a ela do que quaisquer outros seres fora da plenitude. Assim, usou seus poderes mágicos e dividiu sua natureza em duas metades: uma, que subiu aos aeons na plenitude para lá residir com Cristo e Jesus, e a outra, que permaneceu próxima a criação, para continuar a assistí-la em compassiva sabedoria. Seu segundo Self, criado pela compaixão, setornou assim conhecido como Achamot, a errante ou a inferior, que ainda está em contato com a humanidade e as regiões desse mundo.

Foi assim que ocorreu com o universo, que se constelou em três regiões. A primeira é a sublunar ou mundo material, governada por um regente que os antigos chamavam de Pan e que outros chamam indevidamente de demônio. Esse regente reina sobre a terra, as plantas e as criaturas vivas. E, como um paciente pastor de ovelhas, vela para que todas essas manifestações da vida de Sophia possam, um dia, alcançar os mundossuperiores, não importam quão longe vagueiem. Desconhecendo as realidades e desígnios dos poderosos aeons de luz, o regente deste mundo meramente gira aroda de nascimento, morte e renascimento, com a esperança de que, se ele e seu rebanho forem capazes de se manter dentro dos movimentos da vida biológica, não serão condenados na hora da libertação.

Mais alto, no espaço imaterial, está o mundo da alma ou da mente, regido pelo arconte principal, também chamado Demiurgo, tendo diversos nomes, inclusive Yaldabaoth (Deus infantil) e Saclas (o cego). É do reino dessa divindade arrogante e sedenta de poder que se originam muitos conceitos e preceitos que escravizam a mente e a vontade humana. O deus cego tem grande interesse no que ele prazerosamente chama delei. Regras, mandamentos e regulamentos de todo tipo são criados por ele a fim de diminuir a liberdade, direito de nascença do espírito. Filosofias e ideologias de diversos tipos também são colocados na mente humana pelo Demiurgo, junto com a ganância, opoder e outras obsessões que obscurecem e viciam a pureza espiritual de homens e mulheres.

A terceira, no mundo acima dos planetas, imediatamente abaixo dos portais da própria plenitude onipotente, é uma região onde Sophia-Achamoth, a mãe celestial e sabia auxiliar da humanidade, está entronizada. Com ela, vivem incontáveis hostes de anjos de luz e almas santas e retas, que antes ocuparam corpos humanos. Este é o mundo do espírito, onde os anjos gêmeos das personalidades humanas também residem e onde a câmara nupcial está construída; onde as almas inferiores dos humanos podem encontrar e se casar com suas contrapartidas espirituais, os anjos gêmeos. Quando os humanos comungam com a Deusa em seus múltiplos aspectos, é com Sophia-Achamoth, a sábia guardiã, que eles o fazem. Sem a consciência desses sutis mistérios, muitos seguidores bem-intencionados da revelação cristã encararam essa forma de Sophia como Maria, Rainha do Paraíso. É assim, então, que Nossa Senhora da Sabedoria, embora redimida e assistindo Jesus Cristo no trabalho de rendeção, está até hoje perto de seus filhos.

As três regiões cósmicas acima descritas têm suas partes correspondentes dentro da natureza dos filhos dos homens. Dentro de cada ser humano, há a parte material (hyle) derivada do reino de Pan, que carrega os instintos e necessidades da vida material, com sua vocação para a sobrevivência e a continuidade física através da descendência. Há também uma parte que personifica a mente e a emoção, referida freqüentemente como alma (psyche). Essa parte é derivada dos domínios do Demiurgo e, portanto, contémmais de uma característica perigosa. Embora seja a sede da consciência ética e da razão calculada, é também suscetível às influências e lisonjas dos regentes, com seus obsessivos mandamentos, ideologias fanáticas, orgulho e arrogância de alma. A terceira é o espírito humano (pneuma), que pertence à plenitude, embora seja um dom de Sophia. Na maioria dos seres humanos, essa centelha espiritual arde lentamente esonha inconscientemente aguardando o sopro dos emissários da plenitude para seres avivadas para uma ação efetiva. Esse espírito é o de Sophia e através – e além dela – é de essência idêntica à dos próprios supremos Rei e Rainha, Profundidade e Silêncio.

Nessa existência personificada, vemos alguns humanos que podem ser chamados de hiléticos, que são regulados por instintos, pelas necessidades e sensações, e vivem, principalmente, no domínio de Pan. Outros, foram chamados de psíquicos e geralmente veneram o Demiurgo como Deus, sem consciência do mundo espiritual acima dele. Seu orgulho e alegria são a lei e a doutrina e se imaginam superiores aos outroshomens, em virtude de suas leis. Dessa forma, a história espiritual da humanidade é, basicamente, uma progressão da instintividade primitiva e do panteísmo de adoração da natureza (onde Pan é teos, isto é, Deus) à religião dogmática e ética, e desta, à verdade liberdade espiritual da Gnose. Para alcançar o reino da luz e se tornar um pneumático, o ser humano deve, primeiro, renunciar ao seu servilismo aos aspectos físicos e, então freqüentemente com grande dificuldade, renunciar também a escravidão do Demiurgoe de seus servos, sob a forma de servidão ideológica. As idéias escravizam tanto quanto as paixões e, ambas, são obstáculos para o reino do espírito. Surge então a grande renúncia (apolytrosis), quando os humanos quebram as algemas fixadas em seus corpos e mentes pelos regentes. De acordo como o exposto, há apenas uma grande passo a ser dado: a câmara nupcial, ou a união transformadora do humano inferior com a presençaprotetora do anjo gêmeo.

Dos cumes do mudo material e das experiências de êxtase da mente, homens e mulheres levantam os olhos e fitam os montes perpétuos do reino de luz espiritual de Sopha-Achamoth. O anjo gêmeo estende sua asa cintilante para a terra e transporta a alma humana para as alturas, até a câmara nupcial, onde a união espiritual é selada em um casamento celestial. Um por um, Sophia atrai seus filhos espirituais para si,juntando-os ao exército dos eleitos. Esse é o Dom de Sophia, extraído do tesouro sem fim de luz e posto à disposição dos humanos pela sua compaixão e sabedoria. Ela, que permaneceu fiel à verdadeira luz, insta seus filhos a fazerem o mesmo. Fidelidade ao espírito que habita os mais profundos e altos recessos de sua natureza os levará, assim, à renuncia da ilusão e a abraçarem o real.

Do livro: Jung e os Evangelhos Perdidos, Stephan A. Hoeller, Ed. Cultrix/Pensamento.
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Pax Pleromatis.

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