quarta-feira, 16 de abril de 2008

Espelhos e o Louco

Máscara de Carnaval em Veneza



Nem sempre ao olharmos nosso reflexo no espelho, vemos o que é real. Vemos um produto criado para ser mostrado. Um produto que é a síntese de vários produtos vendidos pela sociedade de consumo. A união desses elementos é uma forma de agradar e conseguir um objetivo. O principal deles é a aceitação. Sermos aceitos primeiramente pelos pais, depois a uma tradição familiar, pelos que estão próximos e por fim, pela sociedade em geral, procurando os objetivos gerais impostos como padrões de mercado. O custo de gerar esse produto é relegar ao esquecimento aquilo que verdadeiramente temos. Prefiro comprar algo externo a mim, a utilizar o que tenho à mão.

Criamos uma imagem agradável a ser mostrada a todos. E quanto mais interessante ela se torna, mais a embelezamos. Cultuamos a máscara. Deixamos de lado o que realmente somos em nome do que nos agrada: O reconhecimento e a atenção alheia. Essa máscara implica em um papel a ser vivido. Em recolher o roteiro conforme modelos disponíveis, todos literários, mitológicos ou imaginários. E depois viver esse roteiro, que nos leva a deixar de lado qualquer possibilidade de realizar a aquilo para o que fomos moldados. Assim, o que realmente somos é substituído por algo que reina sobre nós. O ego se veste desses componentes e os usa para dominar nosso destino. A máscara cênica domina o ator, de forma que não se consegue escapar do personagem e continuamos atuando o papel pelo resto de seus dias. Os papéis são trocados por conveniência. O coitado, o responsável, o herói, o marginal, o incompreendido, o sofisticado e o mais complexo de todos: O sábio.

Entretanto, a máscara se faz necessária ao convívio social. É através dela que vamos manipular a sociedade e não sermos manipulados por ela. Não sermos vítimas dos papéis, mas senhores e manipuladores deles. Para essa transição, aparece a figura do bobo da corte, o Louco, o trickster, o Heyokah.




Heyokah



Quem sonha com os pássaros do trovão (ou Wakinian), ou com o trovão e a tempestade, pode se tornar um Heyokah na tradição Lakota, a figura do que conhecemos em nossa sociedade como o palhaço. O Heyokah está acima da simples caricatura. Ele é o bobo sagrado. Tem atributos sobre-humanos e é aquele nos previne das ações funestas do coyote. Rir de si mesmo, inverter os padrões da tribo. Vestir-se ao contrário, enxugar-se antes de se banhar, dormir durante o dia e assim por diante. Heyokah é como o sátiro, o desconcertante, aquele que ensina pelo rir, pelo absurdo. Suas lições são cortantes, pois tiram do comum, alteram a percepção viciada por aquilo que chamamos de correto. Vai além da estagnação, da calcificação, das tradições, pela seriedade e principalmente, pela auto-importância. É a loucura demonstrando o caminho. É a loucura disparatando o que entendemos como normal. A insanidade divina. A caricatura da máscara zombando da pompa.

Em síntese, o Heyokah é alguém que tem habilidades para com a tempestade.


Algo semelhante como o traçado pelos componentes da escola Cínica na Grécia. Os Cínicos defendiam a ausência do supérfluo em nome da autarquia, ou seja, o domínio sobre si mesmo. Diógenes, principal discípulo de Antístenes possuía apenas uma túnica, um cajado, um embornal de pão e vivia em um barril. Assim como invertia as ações da cidade, caricaturava, zombava e levava ao choque.



Diógenes de Sinope

Outro exemplo é o dos dervixes da tariqa Bektash, que mesclam situações cômicas e até desrespeitosas para ativar percepção. Como ir as mesquitas e fazer orações bêbados, sem ablução, ou emitindo sons corpóreos “constrangedores”. Todas situações reprováveis aos olhos dos muçulmanos ortodoxos. O objetivo mais exato é chamar a atenção ao movimento repetitivo e desconexo das práticas islâmicas.

Dionísio, o deus das máscaras, era acompanhado por um cortejo composto por Pã, Príapo, Sileno e dos Sátiros. Havia a alegria e o desconcertante, na indução do êxtase, do selvagem, da transgressão. Dionísio o deus da loucura. O Louco Divino, que quebra os padrões da religiosidade, devolvendo ao estado selvagem e natural.

Quando existe a conexão com o Si Mesmo, o Louco Divino começa a se manifestar e demonstrar a inexorável fragilidade da máscara, o domínio inconseqüente da persona, o controle que a auto-imagem impõe ao indivíduo, o tamanho do apego pelo externo, o ridículo pelo qual vivemos e nos vendemos. A auto-importância começa a se tornar um incomodo e o reflexo do no espelho começa a ser agressivo. Ou o Heyokah vence a máscara e nos torna senhor dela, ou o coyote está pronto para nos derrubar e colocar em perigo.

A máscara deve apenas existir como jogo de cena e não como domínio. Deve demonstrar o mistério para o mundo e a roupa invertida do Heyokah. Sacrificamos nossa auto-imagem, assumimos quem somos. O inimigo do Deus é sacrificado. Olhamos a verdadeira imagem no espelho. Da sátira para a tragédia.

A máscara não se entrega facilmente. Entretanto, a desconstrução já está em curso. Até o momento em que o domínio sobre a persona torna desconstrução em revisão, no olhar correto, na percepção verdadeira do fenômeno do Self.

Tornar-se senhor das máscaras é deixar que o Louco conduza a jornada. O Louco é a conexão com o Si Mesmo, é a chave para o nascimento do Eremita. A assunção do Puer é o começo da jornada. O Puer não é a liberdade, ou temos aí a repetição do vôo de Ícaro. O Puer é o início da manifestação do Sênex. Puer-Sênex são dualidades, misturas, syzygyas. Existe aí o domínio, o controle, a soberania. O dançarino divino como senhor de seus gestos, expressando a dança cósmica em cada ato.

O Puer é o Louco. O Sênex é o Louco.

Cada ato deve ser divino e é conexão. Cada ato com domínio próprio é o despertar eterno. É o enxergar do infinito. É a dança que distorce o que chamamos de realidade. Sem domínio e conhecimento próprio, não podemos ter a percepção correta. Não podemos ver o mundo que se esconde dentro do mundo. Não vemos o visível.

É na visão da águia que existe a manifestação de Wankan Tankan, o Grande Espírito.

Quem vê a si mesmo corretamente, vê ao outro corretamente, vê o mundo corretamente, conhece a própria jornada, toca nas próprias marcas. Torna-se manifestação do Si Mesmo. Muito além de apenas a si mesmo.

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