sexta-feira, 25 de abril de 2008

Como Animais

O bestial vive em nosso mais profundo?



Apenas o humano é domesticado. Animais são sempre selvagens.

O acesso ao próprio selvagem corresponde a descer uma escada em espiral, no mais profundo, na escuridão. Ali, onde nada inspira confiança e conforto, longe de tudo que conhecemos como sendo civilizado e tecnológico, além de toda convenção, condicionamento e proteção, está o real. Apenas o real. O nosso eu selvagem. O encontro com o próprio bestial. Nesse momento temos de assumir nossa animalidade, dominar a fera e tê-la ao nosso lado.

Porém, esse movimento é perigoso para todo o restante do que chamamos de sociedade. O ser selvagem é desagradável, é perseguido, é aquele que vive à margem do restante.

Desde crianças somos domesticados. Condicionados, educados, doutrinados, encarcerados. Essa descaracterização é construída sob todas as expectativas da família, primeiramente. Humilhados, comprados, convertidos, nos sentimos ao final, totalmente úteis para o meio. Aprendemos a dar valor em bens materiais, carreira, objetivos de vida, leis divinas, bênçãos alheias. O restante é dado como diabólico. Rejeitado como algo ruim, horrível, detestável. O que somos realmente está no meio do submundo. O medo é colocado como portal. Os valores zelam pela nossa miséria. A sociedade de consumo tira nossa atenção. A mídia nos torna estúpidos.

Deixar de ser quem se é realmente, nunca é agradável. O aprisionamento é uma violência contra a verdadeira natureza. É necessário deixar de lado o que somos em nome de algo supostamente maior e de suposto real valor. Marcas são criadas. Comportamentos aceitáveis gerados, treinados, colocados em nossa face. É a formação da personalidade. A máscara que vamos impor ao mundo. Cravada no rosto com chicotadas, ou com carinho, ou com sedução, ou com trocas. A máscara é cultuada. É valorizada. É o final da infância. O inicio do nosso reconhecimento como pessoas. Sem máscara não somos aceitos. Sem a máscara não existimos.

As marcas da criação da persona, assim como as marcas de diversos traumas e problemas diversos, são colocados por trás da máscara. E lá ficam todos escondidos. Assim como quem realmente somos. Atravessar o portal da máscara é acessar a escadaria que leva ao submundo. Na escadaria encontramos partes soltas daquilo que nos é real. Fantasmas de todos os tipos. Fantasmas daquilo que escondemos por trás da máscara. Partes daquilo que negamos. Que fomos obrigados a negar. Daquilo que não somos capazes de aceitar de nós mesmos. Tudo que abandonamos em nome de conviver. A vida real que devíamos ter, mas foi abandonada. As raízes daquilo que não brotou. Nossos medos, nossa desesperança. Nosso lado obscuro. Nosso verdadeiro lado complexo.

Tudo isso clamando para voltar à tona. Bombardeando a máscara e a sociedade. Causando problemas a todos que nos cercam. Tentando nos sabotar a cada momento. É a hora de assumir-se. De saber quem se é.

No entanto, é apenas o começo da descida ao submundo.

Quando o portal das máscaras se abre, encontramos nossas feridas. Elas agora estão expostas, não há como negar sua existência. É o momento de culpar a tudo que nos cerca pelo que fizemos, ou pelo que não fizemos, ou pelo que nunca tivemos coragem de fazer. Ali, perante nossas feridas expostas, diante do espelho, vendo nosso verdadeiro rosto, as marcas estampadas, a dor reprimida, o animal acuado, raivoso, pronto para atacar.

O momento em que vem a compreensão da máscara. Ela é como um elmo. A criamos como proteção. Protegemos-nos com ela do restante do condicionamento. Aceitamos o que foi imposto. Tornamos-nos o que todos esperam que sejamos. A máscara é uma violência. É uma forma de degredo do real. A inaceitação. A programação.

Retirar a máscara desfaz o programa. Mas gera outro problema: Como viver com liberdade? Como olhar para o mundo com reais olhos? Como ver as máscaras nas faces alheias? Como ver as pessoas sendo torturadas por elas mesmas e pelo meio em que vivem? É o terror da realidade. É simplesmente, a verdade.

A máscara se torna um elmo, mas o guerreiro teme lutar.

O ego é uma proteção, mas é uma violência. Para o mundo mascarado, existe apenas a espera pela Morte. Viver sem viver. Uma vida fútil, sem sentido, apenas sendo norteada pelo que o mundo das máscaras oferece. Uma vida apenas um pouco mais decorada.

Encarar as próprias marcas é ir além de se deliciar na própria doença. É dissolver complexos, retirar a dor. Encarar o próprio lixo, descendo a escadaria, com o eu selvagem a frente, observando e esperando.

Apenas o inicio, passar por Cérbero, pagar o barqueiro...

Ir além das lágrimas das próprias feridas. Ir de encontro à lembrança de si mesmo. Retirar quem se é do fundo da escada em espiral. O reencontro. O encontro do verdadeiro eu.

Ali, onde a Criança Dourada dialoga com o Velho Sábio.

Não seremos mais vários, confusos perante o mundo. Seremos apenas um e o Universo nos verá.

1 comentários:

Fernanda Freire disse...

Adorei esse post dos animais. Tenho uma certa fixação por esse assunto (da parte BICHo do homem, que se perde na educação).

Hoje eu tive uma crise, pois li num livro algo sobre escrever uma carta para Plutão. E como eu estou num período cabra-reclusa total, pensei: bom momento para fazer isso (já tinha passado a tarde pensando sobre a minha quadratura sol/saturno). E fiz. E só de escrever "Querido Plutão" já comecei a chorar muito. Que coisa essa energia, né?

"Seremos apenas um e o Universo nos verá" é muito bonito.

Beijos.