quarta-feira, 11 de junho de 2008

Deixar-se

Cena de "Naqoyqatsi"


Usar a máscara é também preencher o dialogo interno com condicionamentos. Todos os condicionamentos do mundo. Do mundo que achamos ser o mundo total. Aquele que nos condicionou a crer que é total. Fé é pouco. É ter certeza sem comprovar. Criar mais cascas no nosso universo de imaginação. Mais um naipe em nosso castelo de cartas. Mas um pedaço em lugar nenhum.

Bastar-se é deixar-se. Deixar-se de lado. O eu predominante, que nos domina e gera máscaras. Esse cria mundos inteiros. Fantasias, mitos, peças, roteiros. Força-nos a sermos atores de suas composições. A composição que aprendeu com tudo que nos cerca.

Deixamos tudo de lado. Todas nossas certezas. Entregamos o que achamos que somos. O que gostaríamos de ser baseados no que achamos. O que dizem que somos baseados no que acham serem. O que disseram a todos que são. Regras que todos absorveram para acharem serem reais. Ser real baseado no que se diz pelo mundo. Ser real sem se recriar.

Abandonemos isso tudo. Tudo que achamos conhecer. Vícios mentais recebidos por gerações. Vícios mentais que criamos para manter nosso castelo de cartas. As construções mentais baseadas na lógica e no aparente. O aparente é enganoso, não resiste à percepção. O aparente segue a lógica. Segue ao que conhecemos, criado a partir dos castelos de cartas que montamos.

Vícios mentais do diálogo interior. Pensamentos eternos que nunca param. Pensamentos que geram pensamentos que se repetem e continuam e não cedem e assim vão incessantemente consumindo cada parte nossa. Quando focamos em nós, eles se focam neles e se esquecem por si, indo a locais e movimentos e tempestades. Dominados por sentimentos, locais internos, recônditos, partes, todos, cidades hieroglíficas.

A mente não para, enquanto o ego não para. Tudo quer que gire a seu redor. O ego e as vozes, reflexos de partes interiores que não são o centro. Como sobreviver às tormentas?

Deixe de lado o conhecimento que julga ter. Veio daquilo que foi construído anos e anos por conclusões lógicas e pensamentos montados em cascas. Em reflexões atormentadas pelas vozes. Sendo escravo de seus sentimentos. Gastando toda energia mental que tem mantendo um mundo de fantasias e imaginação. A persona que criou e foi criada. Algo que impediu o desenvolvimento e expressão do Eu Real, o verdadeiro centro de quem é.

Seu conhecimento se mescla com quem acha que é. Mantém a máscara colada no que não é. Justifica o seu caminho, que o manteve longe de si.

Deixe de lado o que não é. Olhe-se e pergunte quem responde. O que responde. Lembre-se de instantes eternos, onde sentiu ser plenamente. Quando ainda era livre para ser. Quando contrariou e teve de ser educado. Quando a domesticação o engoliu. Antes disso. O momento em que se esforçou para fazer algo que não é. Aquele momento em que manipulou a si. Aquele momento em que gostou do agrado por mentir para si mesmo.

Não conhece a si, não conhece a nada. O que pensa conhecer de si não o deixa conhecer quem é. O que conhece da imagem refletida no espelho, é apenas cosmética. Apenas tentativa de se manter organizado. Uma figura para mostrar aos outros. Como gostaria de ser?

O que almeja para si? O que quer de si?

Deixe o apego de lado. O apego daquilo que pensa ser. A dor toda que teve para criar o que chama de maturidade.

Deixe-se de lado. Coloque o que está de lado no centro.

A partir daí que nasce a compreensão. A organização do conhecimento da totalidade. O estado meditativo além de si. Além dos próprios problemas. Além dos problemas que o cercam. Além de dar poder ao outro para machucá-lo. Além de dar poder ao outro para tirar o centro. Além do esforço incalculável para manter o jogo de cena. Além do preço para entrar no baile de máscaras. Esquecer a necessidade de ter. De ter um pouco mais. De ter e ter mais. De ter mais que o outro. Para que o outro o inveje. Para ter mais inveja que o outro tem. Para invejar ou ser invejado. Para não ter a necessidade de contar vantagens. Para poder ouvir o outro falar de si, sem a necessidade de falar sobre si mesmo em seguida. Para não precisar contar uma história melhor do o outro está falando. Para não precisar mostrar-se mais inteligente. Para não precisar dizer que também conhece o assunto. Não precisar dizer que sabe mais que o outro. Ou que tem um leque de conhecimentos tão grande e subestimado.

Para não se importar se é subestimado ou valorizado. Para não precisar falar a melhor piada. Para não precisar ser o mais competente. Nem tão pouco o centro das atenções. Para não se incomodar em nunca ser enganado. Para não querer ser o mais popular. Ou aquele que tem mais sucesso amoroso.

Para não precisar provar nada a ninguém.

Pois o que os outros acham não me importa mais. Em si, basto-me e nada além.

Daí o desapego. Não apenas e tão somente um mero voto de pobreza. Ou praticar uma hipócrita caridade. Ou ter dó. Ou humilhar-se em nome do desprendimento. O desapego de si. Das cascas que não são quem sou. Tudo repasso com compaixão. É minha dádiva para com o mundo dos que dizem serem caridosos. Sentir-se bem por ajudar a todos a se integrarem ao baile de máscaras?

Existir muito pouco para essa doença coletiva.

Partir disso para outro nível de aprendizado. Aquele em que se aprende a aprender. Uma real folha em branco. Que vai compreender novamente a cada palavra que foi anteriormente lida. Dar atenção a tudo que soube, mas não se sabia. Reunificar todo conhecimento sob outro parâmetro, sobre um Eu que domou e tem seu lugar no centro da nova consciência unificada.

Refazer-se enquanto refaz o que acha do outro. O que percebe no outro. O que percebe em si. O que percebe no divino. Não mais achar que viu algo, ter certeza de que não viu nada. De que todas as experiências eram falhas, pois estava tudo preso ao que todos têm acesso. A todos os paradigmas. Os paradigmas dos paradigmas.

Não existe paradigma algum. Eis o paradigma supremo.

O divino despreza o humano na medida em que o humano despreza ao seu Eu Real. Cascas não acessam à divina providencia. Pois cascas não acessam ao Si Mesmo. E só o Si Mesmo vê além. Só o Si Mesmo pode nos levar além. A miséria dos desejos do ego são infantis. Magia alguma pode satisfazê-los. Pois sempre que algo se conquista, gera mais desejos. E os desejos geram desejos sem fim.

Só os desejos do Eu Central, além das cascas e das máscaras, são alcançáveis e trazem saciabilidade. Mesmo os mais pútridos perante a moral. Mesmo os mais incompreensíveis e terrificantes. Pois a divindade não é apenas pacifica. Está além da compreensão comum do mundo das cascas que apenas desejam, sem nada dar em troca.

Cascas não pagam o preço. Não tentam ir além delas mesmas. Não almejam nada além de sua manutenção. Cascas não enfrentam o próprio ego, em nome de algo maior, de alcançar, de perceber, de expandir-se totalmente. Apenas lamentam, pedem, exigem misericórdia, se arrependem e fazem caridade. Assim se sentem úteis, superiores aos que necessitam deles. Assim, sempre existem necessitados.

Quem sou eu para ser dependente de seus sentimentos? Quem sou eu para exigir seu amor? Quem sou eu para deixar-me de lado perdido no que pode sentir por mim? Seus afetos me deixam perdido? Perdi-me no desejo de tê-la. Sou apenas uma casca para os seus caprichos. Não tive maturidade para manter-me e vai me exigir cada pedaço para a maldição de seus afagos. Seduzi a mim mesmo, quando ousava querer seu amor. Não é a selvageria da paixão que me consome, mas o apego por tê-la. Não a amo, mas amo a minha doença.

Essa doença que vomitarei ao cuspir na máscara que me domina.

Quando conhecer-me, a conhecerei. E não será mais do que é. Se isso é a dor que sentirá, isso é o motivo para meu desprezo. Não posso mais me frustrar usando-a. Não é justo para conosco. Apenas para quem julgo ser. E para quem a fiz acreditar que é. Projeção não é ligação. É apenas uma cerca farpada que nos separa. Um dia o desejo por outra aparece e nada do que senti é mais verdadeiro. Nunca o foi, na verdade. Pois não a vi, apenas ao que quero ter de mim. Pois se fosse meu realmente, não gostaria de conquistar.

O amor não é a panacéia universal.

Deixe a tudo e nada mais.

Deixe de lado tudo que o incomoda, mas não é seu. Deixe de lado o que não é seu, mas acreditou ser. Deixe de lado os instantes de frustração por algo que não pertence ao que sente de si. Que não sobre nada.

Queime sua biblioteca interior. Esqueça o que pensou saber. Esqueça o que acreditou sentir. Lembre de cada momento exato, perfeito, em contato. Onde acessou, presenciou, viveu, tocou.

Coloque a Si Mesmo no centro de sua vida. Nada mais importa, o resto é fardo, carga, segurar o mundo nas costas. Viver é a leveza de não carregar o que não interessa. O que não pertence. O que faz olhar para o lado. O que tira o norte.

Qual é o seu objetivo?

O seu objetivo?

O seu e de nenhum outro?

Aquele que sempre sonhou, mas nunca conseguiu ter? Aquele que as pessoas não dão valor? Aquele que vai além de riquezas e sucesso? Aquele que desconstroi as pessoas? Aquele que causa náuseas no sociedade? Aquele que causa horror na moral? Aquele que faz que transgrida? Aquele que a religião não é capaz de alcançar? Aquele que não é politicamente coreto?

Ali no fundo existe um desejo. Um desejo que não é vendido por aí. Um que não está em loja alguma. Aquele que o revolta com as pessoas por não ter realizado totalmente. Aquela sensação de ter sido castrado. De que a criatividade própria foi deixada de lado, pois a vida é dura e não podemos viver de ilusões.

Meu silencio leva além do que me fizeram desejar. O que me fizeram crer. Do que disseram ser certo. Da vergonha que sentia das pessoas. De medir meu sarcasmo. De ser agressivo quando quisesse. De esbofetear o idiota. De me irritar com a burrice. Se não precisasse do outro, teria sido Eu mesmo.

Depois acreditei ser um monstro, pois isso assusta. Monstros irreais tem medo da própria sombra.

E na Sombra vive o monstro real, que assusta o irreal.

Abandone as cascas. Respire os próprios momentos eternos do contato total com o que sempre quis ser. Mas nunca teve coragem. Esse contato real desmonta o monstro que criamos para manter o que exigem de nós. Todos os deveres e contratos. Todas as promessas que fizemos. Toda a teia que nos enfiamos para manter a ilusão pútrida de um mundo moderno.

Não tenha medo. Pode ter medo de Si Mesmo. Mas é um medo real. Um medo além das cascas. Vencer os próprios medos e não os coletivos.

Abra os olhos apenas o suficiente para não ficar zonzo. É na medida certa que o confronto é superado.

É no silêncio. Ali no fundo.

Ali vemos as nossas relações.

Deixar-se é entrar na viagem. É só o começo.

Nada mais, nada menos.

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