sexta-feira, 27 de junho de 2008

Fortaleza da Ilusão


Estar no coletivo é moldar-se e esquecer-se cada vez mais e mais. Encontrar-se no coletivo e buscar a individualidade é tentar encontrar no que o coletivo aceita e recomenda uma identidade. Produzir um papel, um mito pessoal, uma máscara para o todo e inserir-se como mais um, sendo reconhecido pelos demais. A escolha da máscara é feita baseada no nosso eu real, porém com adaptações coletivas, com um grau maior ou menor de dor no contato com os outros em todas suas manifestações. É duro aprender a relacionar-se, a ceder e a endurecer, a criar, nutrir e fixar a personalidade. São necessários aqueles que vão nos ensinar a viver perante o mundo que tanto espera de nós.

Ao mesmo tempo em que o ego vai colocando suas máscaras sobre nós e criando seu domínio tirânico, como falso centro, vai tentando se destacar do restante das pessoas, procurando estender seus “poderes” a todos que nos cercam. Procurando uma forma de individualidade, de diferença, para não ser apenas mais um. O ego deseja antes de tudo, controlar os mecanismos de controle, sendo o falso centro não só de nós, mas de todos. Isso vai depender de até aonde chegamos em nossa vida social. Apenas em nossa família, em nossa vizinhança, trabalho, cidade, estado, país e assim por diante. O ego não procura a diferença dentro de si, aquilo que nos faz únicos. Procura a diferença para com os outros, aquilo que nos faz únicos perante o meio. A diferença é aquilo que nos projeta para o centro de nossa existência. Não é o que nos faz sermos notados. Não é uma forma de dizermos que somos melhores que os outros. Ou que estamos além das pessoas, ou vivemos mais, sabemos mais, conhecemos mais, temos mais inteligência, competência, expressão, fama, “um longo e árduo caminho para chegar aqui”, “que temos tanto a oferecer, tanto a mostrar” e assim por diante. Qualquer sentimento de algo mais ou além quanto ao outro, é expressão do ego. Pois sabemos no nosso intimo o que é nosso e o que não é. O outro não é motivo de comparação. Não é parâmetro. O outro é outro e nós somos quem somos, nada mais, nada menos. A experiência do Si Mesmo está além da comparação, da presunção, de mostrar a todos que ela existe. Qualquer coisa nossa é apenas para nós e para mais ninguém.

Não sou melhor ou pior do que ninguém. Sou apenas eu sem precisar de mais nada, mais ninguém, nada externo, nada que me coloque acima ou abaixo de qualquer coisa. A experiência de encontrar a mim mesmo, de viver quem sou, de estar comigo, basta. Estar-se basta. Perceber-se é perceber a tudo. Perceber-se é compreender que não é necessário compreender-se. Que a busca da auto compreensão é a entrada em um labirinto de auto análise interminável. É entrar na explicação de si mesmo. O Si Mesmo se manifesta por fenômeno, não é palpável, não é tangível, não é tocável. Não é para ser compreendido. Quem somos não carece de explicação. Basta ser e nada mais. Não é necessário ser compreensível aos outros. Nem nos explicarmos a cada instante. Não precisamos de nos justificar, nem falar os motivos de cada erro ou de cada acerto. A maturidade e o acesso ao Self vai nos talhando no caminho. O aprendizado é eterno.

O contato com o Self nos diferencia de uma forma que não precisamos ser diferentes de ninguém. Existe a vaidade, o cuidado consigo mesmo, a luxuria, a sensualidade, a beleza, os prazeres, o sadismo. Todos além dos padrões de moral. Coisas que podem estar ligadas ao Verdadeiro Eu e de sua expressão. Existe o contato com o divino. O real contato, aquele que acontece, que é real, verdadeiro, sensível, perceptível.

A busca da individualidade perante os outros, nos seduz. A necessidade de termos algo que os outros não têm, tanto positiva como negativamente, é a entrada para o mundo do jogo sutil e sempre sádico, da construção de um mundo imaginário que nos diferencia e dá destaque perante os outros. Criamos vantagens perante os outros. Tanto boas, como ruins, de forma a dizermos que não somos iguais ao grande mundo coletivo que nos devora. Mundo coletivo criado pela junção de todos os egos. O grande Ego Coletivo, que nos devora cada instante e toda nossa energia. O mundo coletivo que gera ilusões gerais que absorvem a todas as pessoas, que lutam para mantê-lo como algo real e palpável. Esse enorme e progressista sociedade, toda criada em justiça e na luta para que seja real, que dá aos justos, honestos, esforçados e trabalhadores, reconhecimento e uma vida boa; é falsa e mentirosa. É uma ilusão coletiva. Apenas uma forma de controle, uma forma que seduz, domina, consome, nos faz esquecer de procurar no nosso centro quem somos e não quem querem que sejamos. Nos alicia, engana, promete. Como um político falastrão, garante todas as maravilhas possíveis. Todas aquelas com que sonhamos e nos entregamos. Criamos sonhos em cima de sonhos. Ilusões de quem queremos ser para vencer na vida, para sobrevivermos, para estarmos além dos outros, para sermos exatamente como os outros que têm sucesso são.

Para que queremos ser como aqueles que têm sucesso? O que eles têm de tão especial? Um ego que controla outros egos. Um ego que é reconhecido pelos outros egos. A sensação de que se está no controle, que se tem poder, essencialmente mais poder que outros egos. O poder não é algo tangível coletivamente. O poder de um ego sobre outro é como uma casca que comanda uma outra casca. Um nada que reina sobre o nada. O rei está nu. Imagina belas roupas imaginárias, que todos admiram, mas está nu. Todos elogiam as roupas imaginarias do rei, ou por temê-lo, ou por desejarem estar próximos de quem tem poder (e poder compartilhá-lo), ou por desejarem ser como ele, ou estarem estar em seu lugar. Ninguém olha o rei nu e procura ver em que local estão as próprias roupas. Nenhum é capaz de rir da nudez do rei. Ao ver o ridículo coletivo, poucos são capazes de ver o próprio ridículo. Na insolitez do mundo ilusório, não há chave alguma para o encontro do Si Mesmo. Ali existe apenas a ilusão, aquela de sermos quem não somos, e sermos menos ainda, ao assumir papéis que em nada tem relação conosco.




Todos aceitam os papéis coletivos que são impostos. Tentam ao máximo se adaptar a eles. Tentam executar as tarefas desse papel da forma mais perfeita. Tentam ser os melhores personagens possíveis. Tentam ter o que todos têm. Tentam ser compreensíveis. Tentam ser os incompreendidos, mal humorados, mórbidos, realistas, o que nunca são enganados. Tentam transgredir. Serem os que não aceitam nada. Os que não se adaptam. Os que são diferentes e estão além da podridão da sociedade. Ser o que está além da sociedade é cumprir mais um dos papéis que ela mesma nos impõe. Somos os exemplos do que ninguém deve ser. E através de nós, todos podem perceber o que é estar de acordo. A diferença é aquilo que nos projeta para o centro de nossa existência. Não é aquilo que nos faz termos atenção do outro. Sermos o foco dos problemas. Sermos os eternos incompreendidos, criando em nós confusão para o meio. Pode ser um principio de reação para estarmos além da ilusão coletiva, desde que nos envie para o centro e faça com que compreendamos que não fazemos parte. Que somos únicos e que somos quem somos lá no íntimo.

A ilusão é sádica. Esconde quem somos perante o mundo. Assim como nos entregamos a ela, criando coisas imaginárias. Criando que somos santos, que temos acesso ao divino, imaginando estar vendo anjos, deuses e demônios. Imaginamos que somos especiais, pois algo superior fala conosco. Acreditamos que nossas orações são sempre atendidas, que temos poderes sobrenaturais. Que somos bondosos. Que somos mais religiosos que os outros. Que temos uma crença verdadeira. Que a nossa crença é mais correta. Que aquilo que imaginamos é uma visão. Que as visões que temos são reais. Que os nossos sonhos são sempre premonições. Que conseguimos sentir o que vai acontecer. Que conhecemos as pessoas. Que ninguém é capaz de nos enganar. Que somos abençoados. Que somos mais abençoados que os outros. Que conhecemos pessoas santas. Que aqueles que nos guiam são mais santos que os que guiam outros. Que conseguimos compreender o espiritual. Que seremos salvos. Que estamos em contato. Que divindades apareceram em nossos rituais. Que nossas oferendas são sempre aceitas. Que estamos perante de entidades verdadeiras. Que a nossa religião tem mistérios que as outras não têm. Que existem mistérios. Que compreendemos o mundo pela razão. Que a razão é capaz de explicar alguma coisa. Que temos inteligência o suficiente para compreender tudo que é certo e o que é errado. Que nos adequamos ao que o divino espera da sociedade. Que estamos fazendo o papel de um bom crente. Que a nossa magia funciona. Que estamos em uma ordem que nos dá respostas que ninguém tem. Que temos os melhores livros. Que compreendemos o que está ali escrito. Que livros tem todas as respostas. Que podemos seguir nosso caminho sozinhos. Que podemos ensinar alguém. Que podemos ver significado em tudo. Que tudo que nos cerca tem algum significado.

O ego combina pseudo-resultados com suas necessidades de afirmação. Mescla aquilo que achamos ter sido um contato direto, com suas aspirações e vai construindo um mundo ilusório de percepções distorcidas. Pensamos estarmos em um caminho reto, que conseguimos transcender sempre. Sem vencer o domínio do ego, estamos presos em nossos paradigmas, em nossas visões de mundo, que recebemos da espiritualidade coletiva, aquela que existe apenas e unicamente para sentirmos que transcendemos, sem ir a lugar algum. Acumulamos visões e ensinamentos de caminhos diferentes, de religiões distintas, daquilo tudo que vimos durante a vida, sem o contato real e direto com o que pretendemos saber. O resultado é uma parafernália de conhecimentos que não nos tocaram, gerando um amalgama inútil de pretensões. Falácias verbais que jogamos contra os outros, tentando doutrinar os que nos ouvem, ao mesmo tempo procurando nos convencer de que estamos certos. Qualquer negação do que falamos é um afronta pessoal. Uma afronta que gera uma disputa de egos, com argumentações estúpidas, que tem por fim o objetivo de doutrinar e convencer que nossa vivencia foi mais forte, ou simplesmente real. A comprovação da insegurança do ego, que sabe que tudo que fez foi construído. E que uma voz no fundo diz que não foi. Ou, que mente tão bem para si mesmo que não é capaz de ver o que criou. E de que é dependente. Viver sem ter o domínio que se espera sobre o espiritual é um fato gerador de terror.

O mundo belo e explicativo moldado pela ilusão é uma mentira pela qual lutamos. Aprendemos a explicar bem o que supomos saber e a convencer. Gastamos energia e mais energia tentando mostrar ao outro que temos valor, que conseguimos controlar, que sabemos, que tudo que vivemos é real. Precisamos da ilusão para sobreviver. Precisamos de mantê-la e aumentá-la. No nosso mundo imaginário temos controle, somos reis. Em nossas crenças, além daquelas crenças coletivas, chamadas notadamente de fé, a que cega e que exige que vivamos na escuridão, somos algo que o coletivo deva se espelhar. Quem não se vê corretamente no espelho, sempre procura um reflexo conhecido. Quem necessita de servir de espelho ao outro, reflete coisas as quais não pertencem a ele. Não reflete a si mesmo. É apenas uma projeção. Ser uma projeção é viver uma vida que não é própria. O que vive para orientar, para mostrar o caminho, não vive o próprio caminho. Apenas quem vive o próprio caminho, é fiel a Si Mesmo. Sem conhecer a Si Mesmo, não há o que dizer. Conhecendo-se, não há mais o que dizer, nem a necessidade de se falar.

Viver para criar novas ilusões e lutar para sejam aceitas. Lutar por atenção do coletivo, se inserindo nele ou o negando. Lutar para manter aparências. Preocupar-se com a visão do outro, com o julgamento do outro, com o valor do outro. O outro não é capaz de nos ver, apenas a si e o que existe de coletivo em nós. Tanto não tem olhos para perceber algo além em quem somos como não é capaz de ver em si. Só teremos valor para alguém, se nos inserirmos em seus valores coletivos que esse outro diz serem seus. Ou se mudarmos os valores coletivos do outro, para os nossos valores coletivos. Qual é o melhor valor? O meu ilusório, ou o irreal do outro? É evidente que o melhor valor é aquele que vence. Qual ego exerce melhor controle, que estende mais seu domínio? Esse é o ego que tem sucesso e que é o modelo para os outros egos da coletividade. Tudo mascarado com o politicamente correto, ou o argumento hipócrita. Ou seja, o ego que vence está fazendo bem para o que caiu. Quem domina faz bem para o outro. Quem joga, controla, destrói, vence, pisa, é sádico, está fazendo um bem. Entretanto existe aí uma falácia, pois jogar, controlar, destruir, vencer, pisar e ser sádico, podem ser características do Verdadeiro Eu da pessoa. E isso ser expressão do Self.

Nos reinos do Self, a moral coletiva é inexistente.

Ali existe a fria sinceridade. Aquela que destroça o coletivo. Que mostra o pútrido que vive dentro das pessoas. Que força a transgressão, que nos joga para a marginalidade. O que somos, somos. Não existem justificativas, nem explicações. Num mundo onde toda explicação é uma justificativa. É difícil de conviver com a própria morbidez, se o coletivo não a aprova e somos obrigados a mostrar uma máscara simpática para podermos ser aceitos, podermos trabalhar, ganhar o dinheiro que precisamos, sobreviver. O coletivo reage contra a transgressão. Reage contra a perda de domínio sobre cada um de nós. Todos se tornam agentes para superar a nossa transgressão. Todos são inimigos de nossa marginalidade. Ninguém quer compreender, pensar, ver, enxergar, entender, superar, transcender. Ninguém quer superar. Todos fazem absoluta questão de procurarem os caminhos que os mantenham no sonho coletivo. Na Fortaleza da Ilusão. Não existem salvadores. Todos os caminhos para o encontro do Self são adulterados para não surtirem efeito. Os poucos acessos, em estados alterados de consciência, em estados profundos de meditação, nos momentos de crise, perante quem possa nos levar ao outro lado, são adulterados pelo ego. Pois o ego se apropria desses conhecimentos e os distorce, de forma que não encontremos o caminho e nos mantenhamos eternamente sob o seu domínio enquanto vivermos. Nossas fraquezas nos seduzem a nos mantermos presos e a nunca transcender, ir além, superar, acessar de verdade. A termos experiências reais. A conseguirmos tocar e não apenas imaginar.

Nada além da Fortaleza da Ilusão, onde somos o que queiramos ser. Onde imaginamos ser algo que nos coloque em destaque. O nosso mundo criado por nós para nos sentirmos seguros. Onde além dele existe o terror, o medo, o terrível. O mundo que criamos para termos segurança perante o grande ser devorador que é o mundo. Aquele que nos escraviza e nos afasta de quem somos. Que se alimenta de nossas ilusões. Que joga com sedução, para que sejamos controlados.

Encontrar a Si Mesmo é um novo jogo. O inicio de uma jornada. Onde encontramos forças para superar a sedução do mundo. Controlarmos em nós a tendência de sermos apenas mais uma pedra na imensa parede. Uma parede morta, sem expressão, sem gosto, nem cheiro. Uma parede onipresente. Que nos diz que a adequação, mesmo inadequada é o caminho. Como vencer a programação que nos é imposta por anos e anos inseridos em um sistema que tem controle sobre quem pensamos ser? Como superar todos os comportamentos e vícios mentais que nos mantém sob a ilusão coletiva? Como escapar dos mecanismos do mundo?

Ter uma Fortaleza de Ilusões é ser um super-herói perante o mundo, perante a si, perante aos que nos cercam, aos nossos filhos. Um super-herói é diferenciado em um mundo de pessoas comuns. Uma pessoa comum em um mundo de super-heróis é diferenciada. Não há diferença. Estar no mundo com critérios de ser igual ou diferente é estar na Fortaleza de Ilusões. É pertencer ao mundo. É ser mais um.





0 comentários: