quinta-feira, 5 de junho de 2008

Mecanismos

Angústia


O movimento em que a Alma se sobrepõe ao elemento visível de todos nós, onde a máscara se quebrou, o ego se tornou parte e não é mais aquele tentando controlar. As vozes dos seres que existem em nós (mas não fazem parte) que ecoam na mente estão próximas de desaparecer, o aparecimento do Eu real, o Puer, em um renascimento pessoal total. Ressurgência, atavismo, percepção de novos níveis de consciência. Recriação de tudo que se conhece. Reconstrução pessoal após a desconstrução e reorganização dos estados internos. A dinâmica interna reestruturada, a circulação do Si Mesmo pelos canais internos de energia.

O encontro e desencontro. A inexistência da necessidade obsessiva pelo outro, o encontro daquilo que é nosso e apenas a nós pertence. O rompimento com os compromissos familiares, da sociedade, do meio, das amizades, da vizinhança. A superação de todas as mágoas, enxugando-se todas as lágrimas. O ressequir das travas e impedimentos. A decomposição dos valores, a negação da moral, o reescrever de todos os mitos pessoais, indo além de qualquer mitologia. Negando a qualquer mito pessoal.

O reencontro com o passado e a sua transcendência. Ir além de qualquer local interno, além de qualquer paisagem interior. A repintura da própria arte, a recomposição da própria música, o encontro com a própria beleza. Rever a si mesmo, encontrar a aquele que se perdeu. A revolta por ter se esquecido. O resgate de toda a memória interna e externa. O esquecer do supérfluo. O descartar das luvas que não nos deixam ter tato. O encontro com a própria sensibilidade. O perceber tudo em volta. A concentração real. A libertação da mente daquilo que não faz parte de nós. A percepção total. O aceno a aquilo que nos olha como somos e não como queremos que nos olhem.

Sangrar o sangue que não é nosso. Vomitar a podridão alheia. Retirar o pus do coletivo. Apodrecer em si o que tira a concentração de si. Entrar em si. Ser egoísta. Entrar no centro, entrando numa eterna espiral. Derreter as barreiras internas. Destruir os portais entre partes nossas. Refazer todas as ligações. Perceber os sentidos do que somos. Entender como nos manifestamos. Compreender cada nuance. Ser quem se é. Deixar de lado tudo que não é. Vencer o apego. Saber retirar de si a podridão sem o menor apego. Rever tudo a que damos valor. Superar as imposições externas. Saber o qual é nosso destino e o que esperam de nós. Saber que aquilo esperado não é nosso. Encarar a todos e a tudo. Deixá-los de lado. Devolver o que absorvemos. Desligar as conexões com a teia humana. Desfazer elos, compromissos, erros, exigências. Superar a imaturidade de estar preso a tudo isso.

Deixar de lado toda a mesquinhez e arrogância. As ambições que não são nossas. Os padrões de sucesso. As necessidades infundadas. As imposições de consumo. As relações pessoais ligadas a tudo que a sociedade necessita para continuar funcionando. Desligar-se do sistema. Poder olhar para si sem olhar para o outro. Sem olhar para o mundo. Sem ligar para o que dirão de nós. Não necessitar de criticar por ver o outro além. Superar os elementos invejosos que nos impulsionam. Sermos capazes de sermos quem somos além de qualquer outro. Saber ver a todos sem nos misturarmos a eles. Saber superar a repulsa em ver aqueles que são certamente iguais a nós.

Perceber que não sofremos trauma algum. Que não temos desculpas cientificas pelo que somos. Não temos nada para jogar a culpa. Que somos responsáveis pelos nossos erros. Que sempre tivemos controle. Tudo sempre esteve em nossas mãos. Sempre criamos desculpas. Sempre deixamos de lado. Negamos que somos. Esquecemos. Fomos violentos para conosco. Tudo em nome do coletivo. Da sociedade. Das expectativas. Dos desejos familiares. Em nome do sucesso. Em nome de termos que nos adaptar. Nem sempre com sucesso. Nunca com sucesso. Nunca teremos todo o sucesso que queremos. Isso não é possível. Não é possível atender a tudo que esperam de nós. E se conseguimos pelo menos um pouco, somos o foco da inveja, somos mal tratados, somos indesejáveis. Ganhamos uma multidão de invejosos que elogiam. Somos o foco da falsidade. Quando não somos os falsos desejosos do que é alheio. Quando somos os invejosos. Quando sugamos o outro. Quando nos tornamos dependentes, para termos facilidades, para ganhar uma migalha em troca. Quando somos os mesquinhos. Quando o que fazemos toca a dignidade. Quando deixamos nossa dignidade de lado.

Quando precisamos do outro, quando nos sentimos sozinhos, quando a solidão faz estragos. Quando não nos permitimos escolher melhor, por infantilidade. Quando destroçamos o outro por infantilidade. Quando queremos pisar apenas para nos sentirmos superiores. Quando vemos que aquele que nos admira desmascara a nossa podridão e queremos vê-lo sofrer. Por colocarmos o material acima do sentimento. Por brincar de jogos de poder. Por querermos dominar o outro, apenas para encobrir a nossa fraqueza.

Olhamos com tudo isso para o espelho. E é o que vemos.

Onde estamos? Somos essa casca? Somos podridão? Uma ferida pústula circulando pelas ruas? Apenas o que podemos comprar? Qual o preço por isso?

O preço é a vida putrefeita. É não ter valor algum. É não ser. Esquecidos de nós mesmos, vivendo os dias que nos restam. Sabendo que um dia irão acabar. Temendo a passagem do tempo. Vendo o quanto o Tempo é implacável. Aquele que denuncia a nossa inexistência, a nossa impossibilidade de estarmos perante a eternidade. O que resta é um amontoado de regras religiosas e esperanças estúpidas e tolas em um pós-vida imaginário. Ir a Igreja quando a velhice chega, pedir perdão pelos pecados. Perceber no vazio interior, que ali faltou um ser central, que negamos a vida toda.

O ser real, o Eu verdadeiro. Aquele que sabe quem é e o que aqui estamos fazendo. Aquele que daria um sentido para a velocidade com que os anos passam. O quão curto é uma existência. O quanto perdemos, deixamos de lado, vivendo sem compreender a nada. A falta de perceber o mundo. Percebermos quem somos. Percebemos o quanto esquecidos estamos em nossos jogos, em nossas crenças, na pseudo-realidade inexistente que criamos.

É pouco, muito pouco o que tivemos. O quanto deixamos de andar. O que deixamos de lado em nome da enorme mentira do mundo. Um todo de cascas. Um todo de pessoas que fazem qualquer coisa por atenção e reconhecimento, apenas para se sentirem reais.

Não é necessária a atenção alheia. Nem o reconhecimento da sociedade. Nem nos enquadramos em nome de algum ideal coletivo. Não vale o preço. Ser apenas mais uma pedra no muro.

Apenas uma engrenagem na grande máquina que é o coletivo. Engrenagem moldada para se encaixar. Engrenagem que deve ser consertada para que o grande mecanismo funcione. Deixamos tudo de lado em nome de um funcionamento. Em nome de algo que não nos pertence. Que não pertence a ninguém.

Só aquele momento pode nos tirar desse teatro de horrores. Aquele em que olhamos para o espelho e não vemos alguém. Vemos quem somos.

Nada mais. Nada menos. A realidade.

É nesse momento, quanto mais nos conhecemos, mais esquecemos de nós mesmos.

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